DEATH AND TAXES

Pego carona no post do Julio Bernardo, sobre cobrança de rolha, para falar sobre outras taxas cobradas por alguns estabelecimentos de comida e bebida. 

Eu vou contar um segredo, não sei se é de domínio público, não sei se já espalharam ou saiu na coluna da Mônica Bergamo, mas doravante está aberto: um restaurante, um bar, uma cafeteria, são todos empresas com fins lucrativos. Não são um serviço público, filantrópico, uma ONG, feitos para você levar vantagem financeira. Pelo contrário: a gente vai a um restaurante para pagar mais por aquilo que não a gente não tem competência ou saco para produzir em casa. Eles nos servem para lucrar e, quem sabe, poder contratar nossos serviços depois, com este dinheiro. Eu juro.

E eu insisto em contar este segredo porque parece que qualquer regra que um restaurante ou bar ou café apliquem ao serviço parece fazer com que o cliente médio saia gralhando insatisfeito: “nossa que absurdo, onde já se viu”. Qualquer coisa que coloque um empecilho entre o cara e a conveniência dele é motivo de chamar o Celso Russomanno. A Casa Do Porco não fazia reservas, acho que agora faz para alguns horários, mas no início só atendia por ordem de chegada. “Noffa, que absurdo”. O Omotebako, ao contrário, só trabalha com reservas e em um horário específico. “Meu Deus, que falta de traquejo.” Nada é bom.

Com taxa de rolha, há quem cobre, quem não cobre e há quem nem aceite. Via de regra, a rolha deveria servir para quem quer beber algo muito especial e deseja um serviço e comida à altura da garrafa. Mas uma galera entendeu que a rolha foi feita para baratear o custo da refeição – o que implica, automaticamente, perda de lucro para o restaurante, que tem brigada, estoque, impressão de cardápio e material comprado para aquele serviço. Quando você barateia sua refeição com um vinho de supermercado, perdem: o garçom, o sommelier, o dono do restaurante e as importadoras que poderiam girar um vinho naquela carta. É o objeto direto de renda do estabelecimento, a casa vive de vender comida e bebida. É tipo levar sua própria faxineira pro hotel e pedir para abaterem o valor da limpeza da conta; levar suas peças para borracharia para só pagar os custos de mão-de-obra; é tipo levar um bolo à padaria e pedir para fatiarem, servirem em pratos bonitos, talheres, guardanapos, e só pagar pelos cafés consumidos. Aliás, quantos amigos você já não viu pedirem para levar um bolo de aniversário a um restaurante que tem carta de sobremesas? Eu acho um desaforo.

Quando o Ed Motta reclamou dos preços da rolha no Rio De Janeiro, achei muito certeira a resposta que o Alberto Landgraf deu à Folha: “Não cobrar rolha é um desserviço e desrespeito ao restaurante, aos funcionários, aos importadores e aos profissionais do ramo que trabalham o mês todo para ganhar o que Ed Motta toma de vinho em uma noite”. Errado não tá.

De uns tempos para cá, o Restaurante Cais começou a cobrar R$50/pessoa antecipados e com horário de chegada restrito às 19h00 – o valor, claro, é abatido na conta do jantar, caso você cumpra sua promessa de comparecer à mesa que outra pessoa poderia estar ocupando e gastando. O Oteque cobra antecipado o valor do menu-degustação, sem bebidas. Eu sou a favor e não é pouco. Sabe por que as pessoas reclamam? Não é porque elas acham 50 reais um absurdo. É porque elas querem a livre delícia de poder desmarcar sem avisar, de desistir, de tocar um “foda-se” para quem as estava esperando. O Rafael Costa E Silva (Lasai) e a Cris Beltrão (Bazzar À Vins), não raro, comentavam publicamente sobre os clientes que reservavam mas não apareciam. É recorrente, quase diário. Eu entendo todas as desculpas: teve alagamento, a cunhada passou mal, o chefe pediu para ficar mais meia horinha e você quebrou a perna. Sinto muito, é a regra. Se você não sair no prejuízo, a casa sairá – e, no caso, a culpa é menos dela do que sua.

É bem comum fora do Brasil: estabelecimentos pequenos ou muito caros ou muito lotados cobram algum valor (quando não o valor cheio) antecipado. “Ah, mas no Brasil não funciona assim, nossa cultura é diferente”. Experimenta dar um perdido no voo da Latam, ou dizer que trouxe um cliente a mais de última hora para embarcar, ou chegar meia horinha atrasado, ou tentar embarcar com uma mala a mais do que o permitido. 

Sabe o que NÃO é praxe lá fora? O turista brasileiro passar num Carrefour City ou Tesco antes de sair para jantar e levar uma garrafa de Vin De Table a um restaurante famosinho, um Lyle’s, um Momofuku Ko, um Clamato. Sabe o que também não é praxe? O turista brasileiro reclamar da taxa antecipada do L’Ambroisie, Sushi Noz ou Alain Ducasse. Eu acho legal quem aceita vinho de fora, eu mesmo levo a alguns lugares que aceitam, cobrando ou não. Se não aceitam, paciência.

No meu bar, se e quando eu tiver um bar, não vai ser permitido levar nada: nem vinho, nem o próprio bitter, nem aquele gim trazido de Londres (que eu já provei mil vezes), mas que você quer muito provar um drink com ele. Tem bar que aceita, que gosta. No meu, não vai poder. Simples assim. Quer levar uma garrafa? Leve-a de presente para o dono ou para o staff – quem sabe eles não decidem fazer um drink para você? E isso só porque este vai ser o meu bar, não o seu bar, nem o do Raphael Despirite, nem o da Martha Suplicy, nem o do Taumaturgo Ferreira. 

De qualquer forma, nunca é demais repetir: caso não goste da regra, você pode sempre não frequentar aquela casa, frequentar outra casa, ou abrir o próprio estabelecimento com as regras dos seus sonhos. Eu juro.

A CAVALGADA DAS VALQUÍRIAS

O prenúncio é por conta dos violinos. Entram os trombones, as trompas wagnerianas, os tambores rufam e, finalmente, o splash dos pratos. É isso que se espera, uma Cavalgada Das Valquírias, das harmonizações de vinhos. A fé do comensal (porque é isso que lhe vendem) é que comida e vinho, quando unidos, formem um conjunto mais belo do que ambos a sós. A premissa é linda, só que ela ocorre menos do que a Aurora Boreal.

Que me perdoem os sommeliers sérios, mas eu penso harmonização de vinhos um pouco como astrologia gourmet. Existem tantas variações para tantas combinações que, no fim do dia, é mais interessante olhar para os indivíduos separadamente e saber que eles se viram sozinhos. Isso de Camembert com Chardonnay, Ostra com Chablis é um alinhamento dos astros muito semelhante ao de Áries com Gêmeos, Leão com Libra – dá mais certo nos livros do que na vida. E não é que seja uma completa mentira, mas o arrebatamento que acontece na boca quando se juntam o Yquem e o Roquefort (ou foie gras), o Champagne e o caviar, o Porto e o chocolate, é raríssimo.

Vou me defender de novo, que é para não me matarem com um saca-rolhas enfiado na minha retina: errado não tá. Mas criou-se na cabeça do bebedor médio que ele precisa harmonizar tudo – e, pior, que a harmonização tem que fazê-lo levitar a 4 centímetros do chão ao sentir cada elemento se fundindo na boca. É muita coisa para prestar atenção e por isso, provavelmente, ele há de negligenciar a única que realmente importa: se está tudo gostoso. São tantos empecilhos que colocam entre o vinho, a comida e a boca do cidadão, que ele mal consegue se divertir. É como se, antes de transar, você tivesse que ler o manual de instruções e assistir a um vídeo da tia falando sobre as saídas de emergência. Brocha. 

Existe uma regra funcional: harmonização boa é redução de danos – o famoso “não fode, mano”. Explico-me. Nos anos 1980 e 1990, não era raro eu entrar num restaurante italiano e ver uma garrafaça de Black Label no centro da mesa. Não é preciso muito esforço para saber que aquilo ali não dava muito jogo com os fettuccine à parisiense que os tiozões pediam. Existia um sommelier do grupo Kinoshita que indicava Barolo com Robalo (harmonização por anagrama). Tem também o cara que te liga de domingo pedindo para você ajudar a harmonizar o que já está planejado: “será que você pode ajudar o Sauvignon Blanc que eu já abri a harmonizar com o cordeirinho que eu já preparei?”. Creio que não.

Agora, atirando mais ou menos na direção certa, o risco de funcionar é alto. E isso já deveria bastar. Não sabe nem para onde atirar? Escolhe um vinho bom e uma comida excelente e o jogo tá ganho. A probabilidade maior é que funcionem separadamente – e é nela que eu aposto minhas fichas. Se juntos eles brigarem, você ainda pode tomá-los cada um na sua vez. É um gole delicioso e, depois, uma garfada idem. O que poderia dar errado aqui?

Via de regra, vinho vai bem com comida, porque vai bem com a mesa. O teor alcóolico é quase preciso para que as pessoas vão ficando embriagadas aos poucos, para que dê tempo de parar antes do vexame, para que a conversa vá se descongestionando e o tom de voz vá num crescendo homeopático, que torna imperceptível a evolução dos gestos e assuntos e palavrões.

Mas não. Em vez disso, o cara abre dois, três vinhos, fica cheirando e provando cada garfada com um diferente, pulando amarelinha de regra, “tem muita madeira pro linguado”; “talvez uma safra mais jovem fosse mais estruturada para sustentar o molho do assado”. É igual o cidadão que fica procurando o ponto G… e esquece de transar bem. Aí sim, ele não fode.

Nos restaurantes legais, vá lá, para isso estão os sommeliers e sommelières, para adequar o vinho ao prato ao seu gosto e ao seu bolso. Deixe também que a divisão das funções seja clara: o trabalho é deles e a catarse é sua. Caso ela não aconteça, bola para frente e pinga para dentro. Not a single fuck was given that day.

AS AMERICANAS

O primeiro ataque no nariz traz uma memória dificílima: os porres da adolescência revividos em HD. A nota, de cara e sem refletir muito, não é de uva, é de galão. O projeto Americanas da Gabriela Monteleone assusta. Porque pro cidadão em processo de gourmetização, ele representa o caminho inverso. Depois que você entra para o universo dos “vinhos finos” (que nomenclatura brega, meu Deus), parece um caminho sem volta. Como assim, agora que eu estou me afeiçoando e aperfeiçoando no universo dos vinhos, me sentindo ousado por gostar de Beaujolais, encantado por Savoie, dizendo que Savennières é minha região favorita (porque chenin é chenin, né?)… voltando, como assim um vinho de uva bordô? A saber: Bordô é tipo Isabel, aquelas uvas malditas e ditas não-viníferas – as “mais de mesa, Pederneiras”.

Eu provei ontem o Americanas. E não é que eu não tenha uma opinião formada: eu tenho setenta e cinco opiniões formadas sobre ele. Estou completamente perdido, andando pela casa com a taça em riste, entupindo o Whatsapp da Gabriela com áudios intermináveis e tentando entender se a aversão ao cheiro de vinho de galão é culpa minha ou do sistema, de sei lá quem. Eu pareço um esquerdomacho pedindo desculpas por existir e querendo entender meus preconceitos. Sou o eno-feministo. E é por isso que eu quis escrever sobre ele. Porque ele não é um vinho, é uma discussão, é pauta para jogo. 

Mas vou ao vinho antes, e depois a ela, a discussão. O primeiro ataque, como eu disse, é um cheiro forte, mas sinto informar ao meu próprio cérebro que é um cheiro de fruta – só que é uma fruta da qual eu tenho ranço e trauma. Eu que lute. Agora, na boca, é a primeira vez que entro em contato com um vinho Isabelão bem vinificado. Passado o obstáculo da memória desafetiva, a boca é facílima, sem arestas, um vinho claramente feito por gente profissional, não por um zé das couve que largou os engaços lá para Deus vinificar e bola para frente. É, sem dúvida, um vinho de galão, de garrafão, não muda a vida de ninguém, não abrirei em nenhuma boda. Mas tá lá, é um vinho, é firme no que entrega e imagino que haja um um espaço claro onde ele deva transitar, talvez um passo possível para quem tem neste formato a única referência vínica – o país não é feito só de nós. Não compre para surpreender enoiniciados, o terreno aqui é outro, o tipo de uva também.

Mas isso é do ponto de vista organoléptico. Do ponto de vista editorial e intelectual, é uma provocação. As uvas “americanas”, essas que fazem vinho de pobre (não vou de eufemismo, amor), respondem por mais de 60% do consumo brasileiro. Me parece um pouco viralatismo não olhar para o que o país tem de sobra e decidir o que fazer com aquilo. É tipo só andar de metrô em Paris, assistir ao Mais Você legendado. Mas longe de mim querer falar em descolonização do paladar, criticar o eurocentrismo. Eu e você e nossos colegas de firma que pedem comida no Ma-kin-Thai somos devotos de São Overnoy, eu adoro o vinho fino, mesmo com esse nome. Mais que isso: eu gasto metade do meu salário em bebidas caras e anchovas do Cantábrico. Mas não consigo olhar para esse projeto e não achar do caralho. 

O sommelier e a sommelière, muito além de servir vinho em restaurante de ocasião, têm a função de falar com produtores, olhar o mercado, sintetizar um pouco do zeitgeist e do pensamento corrente sobre bebidas, na oferta que lhe fazem à mesa. O projeto das Americanas faz refletir, em primeiro lugar, sobre “com quem estamos falando”. E é inadmissível que a sommelerie brasileira não tenha dado tanta atenção para esse aspecto até hoje. Também põe em debate nossa relação com os cheiros que aprendemos a odiar – e outros que, cafonas que somos, aprendemos a endeusar. 

A minha recomendação é, por enquanto, não chamar de vinho. Ou não pensar como vinho. Vale o esforço de, em vez de pensá-lo como mais um tipo de uva (pinot noir, meunier, merlot), pensá-lo como outra fruta (tipo caju, jabuticaba, butiá, qualquer uma). Assim, perde-se a comparação – como o quibe de abóbora, que não é quibe, mas pode ser bom.

Em segundo lugar, eu recomendo provar como exercício intelectual e tentar entender os porquês daquilo ser considerado algo menor. Quando digo “aquilo”, não falo deste rótulo em especial, falo do espectro todo, daquele perfil de aromas e sabores estar descascando batata no porão da nossa paleta de gostos. Por que diabos este seria um aroma menor? Porque é fedido, e não cheiroso? Quando foi e de quem que a gente comprou essa ideia? Deve ser por motivo de abundância, aquilo de quanto mais exclusivo, mais caro e, portanto, melhor. Não sei se está errado. Não sei mesmo.

Eu tendo a pensar que o universo das bebidas vai (na verdade já está) expandir território e se desamarrar dos concretismos: vinho só disso, as 9 ou 10 classes de destilados (rum, whisky, gim, vodka, cognac etc) – quase acompanhando as discussões de gênero que temos hoje, saindo um pouco desse binarismo senil que nos faz pensar “isso ou aquilo”. E se meu vermute não tiver losna? “Ai, não pode chamar de vermute”. E se minha caipirinha for feita com um pouco de vodka porque a cachaça acabou no meio da dose? “Ai, não me chame de caipirinha”. Brigar por nomenclatura, para mim, é muleta de canalha. Mas tudo bem, eu posso não chamar de vinho, de vermute, de caipirinha. Eu posso chamar de Moacir, se eu quiser. Mas brigar por nomenclatura é priorizar uma perfumaria em vez do conteúdo. 

Como, para mim, o futuro das bebidas está no desengaço das tradições, eu acho que daqui a alguns anos eu vou pagar pau para mim mesmo por ter pagado pau para este projeto da Gabriela hoje. Não se enganem, não é um projeto para baratear o vinho (para isso ela tem os vinhos de growler lá): é uma escolha estética, pensada com carinho, e feita para foder com o meu fim de semana, porque até segunda-feira eu estarei com o nariz e a cabeça enfiados dentro da taça tentando reconhecer meus privilégios de hétero-branco-cis… brinks, nem hétero eu sou. Mas eu me senti provocado e estou inquieto com a ideia de que somos todos um bando de bundões e xiitas por motivo inútil. É bom que o mundo do vinho saia para além das taças e entre um pouco nas nossas ideias. Até segunda-feira.