A CAVALGADA DAS VALQUÍRIAS

O prenúncio é por conta dos violinos. Entram os trombones, as trompas wagnerianas, os tambores rufam e, finalmente, o splash dos pratos. É isso que se espera, uma Cavalgada Das Valquírias, das harmonizações de vinhos. A fé do comensal (porque é isso que lhe vendem) é que comida e vinho, quando unidos, formem um conjunto mais belo do que ambos a sós. A premissa é linda, só que ela ocorre menos do que a Aurora Boreal.

Que me perdoem os sommeliers sérios, mas eu penso harmonização de vinhos um pouco como astrologia gourmet. Existem tantas variações para tantas combinações que, no fim do dia, é mais interessante olhar para os indivíduos separadamente e saber que eles se viram sozinhos. Isso de Camembert com Chardonnay, Ostra com Chablis é um alinhamento dos astros muito semelhante ao de Áries com Gêmeos, Leão com Libra – dá mais certo nos livros do que na vida. E não é que seja uma completa mentira, mas o arrebatamento que acontece na boca quando se juntam o Yquem e o Roquefort (ou foie gras), o Champagne e o caviar, o Porto e o chocolate, é raríssimo.

Vou me defender de novo, que é para não me matarem com um saca-rolhas enfiado na minha retina: errado não tá. Mas criou-se na cabeça do bebedor médio que ele precisa harmonizar tudo – e, pior, que a harmonização tem que fazê-lo levitar a 4 centímetros do chão ao sentir cada elemento se fundindo na boca. É muita coisa para prestar atenção e por isso, provavelmente, ele há de negligenciar a única que realmente importa: se está tudo gostoso. São tantos empecilhos que colocam entre o vinho, a comida e a boca do cidadão, que ele mal consegue se divertir. É como se, antes de transar, você tivesse que ler o manual de instruções e assistir a um vídeo da tia falando sobre as saídas de emergência. Brocha. 

Existe uma regra funcional: harmonização boa é redução de danos – o famoso “não fode, mano”. Explico-me. Nos anos 1980 e 1990, não era raro eu entrar num restaurante italiano e ver uma garrafaça de Black Label no centro da mesa. Não é preciso muito esforço para saber que aquilo ali não dava muito jogo com os fettuccine à parisiense que os tiozões pediam. Existia um sommelier do grupo Kinoshita que indicava Barolo com Robalo (harmonização por anagrama). Tem também o cara que te liga de domingo pedindo para você ajudar a harmonizar o que já está planejado: “será que você pode ajudar o Sauvignon Blanc que eu já abri a harmonizar com o cordeirinho que eu já preparei?”. Creio que não.

Agora, atirando mais ou menos na direção certa, o risco de funcionar é alto. E isso já deveria bastar. Não sabe nem para onde atirar? Escolhe um vinho bom e uma comida excelente e o jogo tá ganho. A probabilidade maior é que funcionem separadamente – e é nela que eu aposto minhas fichas. Se juntos eles brigarem, você ainda pode tomá-los cada um na sua vez. É um gole delicioso e, depois, uma garfada idem. O que poderia dar errado aqui?

Via de regra, vinho vai bem com comida, porque vai bem com a mesa. O teor alcóolico é quase preciso para que as pessoas vão ficando embriagadas aos poucos, para que dê tempo de parar antes do vexame, para que a conversa vá se descongestionando e o tom de voz vá num crescendo homeopático, que torna imperceptível a evolução dos gestos e assuntos e palavrões.

Mas não. Em vez disso, o cara abre dois, três vinhos, fica cheirando e provando cada garfada com um diferente, pulando amarelinha de regra, “tem muita madeira pro linguado”; “talvez uma safra mais jovem fosse mais estruturada para sustentar o molho do assado”. É igual o cidadão que fica procurando o ponto G… e esquece de transar bem. Aí sim, ele não fode.

Nos restaurantes legais, vá lá, para isso estão os sommeliers e sommelières, para adequar o vinho ao prato ao seu gosto e ao seu bolso. Deixe também que a divisão das funções seja clara: o trabalho é deles e a catarse é sua. Caso ela não aconteça, bola para frente e pinga para dentro. Not a single fuck was given that day.