
Eu costumo anotar as coisas, porque bebo, minha memória falha aqui e ali. Mas Alberto Landgraf faz questão de me lembrar repetidamente que eu fui o primeiro jornalista a escrever sobre ele neste país, quando o Epice tinha acabado de abrir. É bem possível, até porque, na época (lá por 2011, talvez?), ele mesmo não bebia uma gota sequer de álcool. O cozinheiro que passa por lugares rígidos (Alberto passou pelo Tom Aikens, Gordon Ramsay e Pierre Gagnaire) sabe que o caminho da cachaça é perigosíssimo e muito recorrente. E a decisão de não beber, pelo menos quando se está começando a decolar, é bem esperta: o Epice abriu sóbrio e determinado a mudar o padrão do que a gente comia e, com uma cozinha minúscula, fez milagre e subiu o sarrafo da comida em São Paulo. Subiu muito. O menu de almoço que custava R$39,00 (entrada, principal, sobremesa e água grátis) às vezes tinha boudin de foie gras; à noite, servia o que hoje muita gente parece tentar emular em restaurantes recém-inaugurados. Trouxe James Lowe, ensinou um pessoal a fazer carne dry-aged, botou orelha de porco frita como entrada, criou chefs e sub-chefs que estão comandando a nova cena de comida. Fez escola.
O Epice tinha falhas, claro: uma sobremesa de abacaxi que logo saiu do cardápio, um bar completamente defasado, a decoração que não condizia muito com o DNA da comida, uma carta de vinhos que, apesar de bem escolhidinha, ainda era deficitária, não tinha um sommelier no salão. Algumas falhas foram sendo corrigidas ao longo do tempo – chegou a ter Kennedy Nascimento comandando o que, hoje, eu sei que foi o melhor bar de restaurante que esta cidade já teve. Hoje eu sei, mas é tarde demais. O Epice fechou – não sei se o Alberto falhou em São Paulo ou se São Paulo falhou com ele, mas o Epice era ouro e a gente achava pouco. Que erro. Porque enquanto procurávamos nosso nióbio, perdemos Landgraf justamente para quem? Pro Rio De Janeiro, terra que até pouco tempo atrás era um deserto de boa comida.
Se, por um lado, dói ver Landgraf a uma ponte aérea de distância, por outro, é com motivo justo: o Oteque é hoje o melhor restaurante do nosso continente e com larguíssima margem, uma vaga de estacionamento para um caminhão-cegonha entre ele e o segundo colocado, seja quem for. É meu restaurante favorito do hemisfério sul. Fui três vezes e só melhora. Na última, agora no final de setembro, não vi nada fora do lugar. Os erros do Epice estão resolvidos, a começar pelo serviço.
Com Laís Aoki e Léo Silveira no comando, ambos sommeliers, o salão está sempre um passo à frente da sua vontade e outro passo atrás da sua percepção. A água é reposta o tempo todo e os pratos são retirados em silêncio, mas com um sorriso. A explicação das bebidas vem com conhecimento pleno, mas é econômica. O serviço exala competência, só que é amável, às vezes até afetuoso, e faz um jantar importante perder a pompa do constrangimento engravatado – aquele tanto de sim que você tem que ficar repetindo e concordando. A taça é Zalto, mas não precisa falar baixo. “Hoje eu bebo vinho, mas o que eu sei, foram o Léo e a Laís que me ensinaram.”, diz o chef. Não duvido.
Aliás, eu recomendo fortemente a harmonização de bebidas (existem duas: uma mais barata e outra mais cara, ambas ótimas). Se levar em consideração o preço de uma garrafa ali, a brincadeira sai muito mais barata e vantajosa. Além disso, você está num restaurante 3 estrelas Michelin (eu quero que se foda se o Guia ainda não se tocou disso), que investe alto para que a bebida tenha tanta originalidade quanto a comida, vale a pena pedir para que eles também escolham seu mundo ideal. É, inclusive, parte do preço que se paga pela comida e serviço, ter gente muito competente para te servir melhor do que você mesmo se serviria. E a harmonização é um primor, tem amplitude de vocabulário: começa com um sakê, passeia entre os vinhos que pautam as conversas de bar dos sommeliers moderninhos, mete um natureba radical, jorram Juras e Savoies, volta para a borgonha tradicional, solta uma cerveja da Trilha, um vinho Madeira, um Jurançon, sobe pra Espanha. Além disso, tem vinhos exclusivos que, no Brasil, só existem ali. Tem Champagne? Também tem (Chartogne Taillet). Mas, como Frank Bruni costumava dizer, a diferença entre a culinária boa e a excelente é saber exatamente o ponto em que “cremoso, amanteigado e untuoso” torna-se um bolo de gordura e parar logo antes disso. Vale para o serviço de vinhos e afins. É o melhor passeio entre bebidas que já vi no país, com o maior léxico e com nenhum tiro errado, nada menor do que impecável.
Era meu aniversário, então também ganhei uma taça de Overnoy e uma de Gabrio Bini – eles conhecem o próprio cliente. E, se não conhecem, perguntam. A arrogância a que os restaurantes estrelados chegaram é assustadora. Por que diabos ninguém mais pergunta nada ao cliente? Lembro-me que no Frantzén, em Estocolmo, me perguntaram em que lado da mesa eu gostaria que minha cadeira estivesse (mais de frente pro salão ou pra cozinha); no Per Se, me perguntaram se eu preferia que minha cortesia fosse um Sauternes ou um Madeira velho (veja bem, a cortesia). No Oteque, em determinado momento da refeição, fui perguntado se o ritmo dos pratos estava ao meu gosto, se eu preferia mais lento ou mais rápido – que cuidado raro de ser visto.
Os pratos são trazidos pelos cozinheiros, confeiteiros, pelo Nilson (o sub-chef), pelo próprio Alberto. Seria proibitivo pagar R$550 por um menu degustação e ter um garçom do Spot que caga para a sua mesa e derrama os pratos e copos no seu colo como se fosse um Linguine de patins no final de Ratatouille; mas, tão horrível quanto, seria pagar alto para não poder desfrutar do jantar e ter que ouvir uma masterclass sobre onde os vegetais foram colhidos e como aquilo que você está comendo é valioso. Aqui, novamente, a explicação é precisa: “temos ostra, picles de maçã verde e uma emulsão de ostra”. Eu só fiquei sabendo de mais detalhes do preparo porque, depois de dar a primeira (e única) bocada, perdi, perdi feio. A ostra gorda e de sabor limpíssimo veio em contraste com um sabor de mato, grama cortada mesmo. Era chique, mas era ousado, um gosto que ninguém tem coragem de botar para jogo. Perguntei o que era. “É salsinha”, me disse o Alberto. As respostas existem, mas, como em Mad Men, o silêncio fala alto para quem quer ouvir o subtexto, e ele basta.

O Oteque também tem um aquário próprio de ostras, que fica logo ao lado da mesa da cozinha, emulando água do mar, mas livre de quaisquer impurezas (novamente, eu que perguntei). “Foi o único jeito que eu encontrei para poder servir ostras e ter a certeza de que nenhuma pessoa passaria mal saindo daqui.” Nenhum jantar pode ser tão inesquecível quanto um jantar com ostra duvidosa. Num lugar inseguro, além de todo o processo utilizado na emulsão, o chef teria se gabado da procedência das ostras, do aquário, da salsinha, talvez tivesse falado o nome do Seu Isaías, que planta só três pés de hortaliça por estação. Dá palestra quem precisa te entregar, além do próprio prato, mais provas de que aquilo vai ser bom. Por favor, não coloque a insegurança da sua cozinha na conta dos meus ouvidos.
Depois disso, vieram beterrabas com leite de castanha, pato curado e fermento seco; um atum bluefin com maionese de peixe e caviar osetra; sardinha com foie gras e brioche, um clássico que começou lá nos tempos de Epice; camarão, pirão, vinagrete de pimenta de cheiro e azedinha; arroz de músculo com bottarga e trufa italiana; sorvete de castanha do pará crua. É tudo muito bom, muito acima da média. E é acima da média não só em gosto, mas também intelectualmente – é comida moderna, sem arroubos criativos gratuitos e, mais importante, é comida mesmo, comida de verdade, não uma ideia ou piadinha culinária que o chef pensou no banho. É possível “ter uma experiência gastronômica” (que horror) sem sofrer uma gavagem de fumaças e truques culinários, sem ter 24 passos no menu. O que chamam de experiência, eu chamo de comer bem, beber à altura, ser bem servido e, ao mesmo tempo, conseguir aproveitar a mesa, a companhia, a noite. Check.
Eu não vou passar horas superadjetivando prato a prato – isso você encontra em 20 outros blogs e resenhas. Até porque, em determinado momento do jantar, bem cedo, ali pelo terceiro prato, eu parei de anotar. Não vale a pena. No Oteque, não se comem palavras, come-se comida de quem está no topo da cadeia alimentar. E, se o Epice subiu o sarrafo do que é boa gastronomia em São Paulo, o Oteque muda a regra de novo, agora para o continente. Espero que não falhemos com ele.

*Mas quanto sai a conta inteira? Depende. Acho que quem pode pagar um duas estrelas Europa pode pagar um três no Brasil; quem pode levar a família na Fogo De Chão também pode; quem pode comprar um terno bonitinho pro casamento do amigo, também pode. Agora, se você prefere ir com a família à Fogo De Chão ou comprar um terno, você pode ir ao Oteque, mas não deve.
OTEQUE
Rua Conde de Irajá, 581 – Botafogo, Rio de Janeiro
Telefone: (21) 3486-5758
Instagram: https://www.instagram.com/oteque_rj/