POR QUE ESTAMOS SAINDO? (Just Dance)

Eram 21h00 de uma quinta-feira, meu primeiro dia na Suécia depois de 10 anos sem pisar no país pelo qual mais tenho carinho nesta vida, mais do que meu próprio país (Brasil). Eu tinha chegado no meio do dia, deixado minhas coisas no hotel, caminhado 5 ou 6 quilômetros pelas ilhas de Södermalm e Normalm e tomado 3 meias-taças de vinho no delicioso bar Folii (total: 225ml). Tomei um banho e, voltando para as 21h00, segui para o Marie Laveau para jantar. O Marie Laveau é um bar que costumava servir ótimo “bangers & mash” (linguiça com purê de batata), boas cervejas e, com o passar da noite, se transformava num bar/baladinha indie. Não sei mais como está, nem se a linguiça com purê continua boa, porque às 21h15 eu cheguei na porta do bar e, sem querer, meu pé esbarrou num suporte para vela de 15cm de altura e derramou um pouco de querosene no chão. Antes que eu conseguisse pedir desculpas, o rapaz de moletom que estava na porta já começou a me tocar como um gado dali, em sueco. Eu fui expulso antes de entrar. Acho que mais pessoas também foram porque o bar estava praticamente vazio. Dois outros rapazes muito gentis que estavam fumando um cigarro na porta me avisaram “parece que você já bebeu suficiente essa noite amigo”. Eu disse que não tinha bebido naquela noite, eles notaram, eu exalava sobriedade, o cabelo ainda úmido do banho. Tudo bem. A casa estava vazia e eu segui meu rumo para jantar no meu bistrô favorito, o Rolfs Kök. Ali sim, quatro homens alegremente embriagados no balcão estavam falando alto, rindo e contribuindo para a boa atmosfera do lugar. Ninguém saiu ferido.

No dia seguinte, eu fui ao Secret Garden, uma balada gay também em Estocolmo. Cheguei cedo, encontrei meus amigos. Ali, como em vários outros clubes que conheço na cidade, há dois funcionários que passam a noite inteira rodando a casa e pescando pessoas que “aparentam já ter bebido demais” para expulsá-las – algumas delas são chutadas antes da meia-noite, sem nem ter os olhos vermelhos. Veja bem: não são pessoas causando problemas, passando a mão na bunda de alguém, gritando com o garçom, é só alguém que, segundo a patrulha da pinga, já tomou mais do que a mãe do bedel dizia ser saudável no almoço de domingo. São vários retirados, um a um, gente que sequer está pisando no colchão d’água ou andando torto. Um amigo meu, alegre mas não bêbado, foi convidado a se retirar enquanto dançava alegremente e apenas isso. Não tem discussão, é tchau e bênção. Depois de cinco long necks de cerveja (R$38 cada), eu fui ao bar e, ao perguntar “can I get a beer, please?”, o bartender respondeu “no, you can get a water”, com cara de lacracinha. Eu achei que tivesse ido ao bar, não à terapia – e foi isso que respondi para ele, antes de pegar o casaco e voluntariamente me retirar.

Toda casa tem o direito à sua própria política de comportamento, não tenho dúvidas: meu clube, minhas regras. Bêbados podem ser um problemão, eu bem sei. A discussão que proponho é sobre os motivos para sairmos de casa. Por que deveríamos ir a um bar ou a uma balada?

Até onde eu consigo me lembrar, a ideia original de um bar era vender bebidas que, invariavelmente, alteram os sentidos (para melhor ou para pior). Não é que alguns bêbados invadiram a cena de bares, que antes era careta; não é que seja ilícito; e também não é que os suecos sejam assim bebedores comedidos. É uma tendência de comportamento. E a Suécia é o país que conheço onde as coisas acontecem primeiro – as tendências de comportamento social, a relação com o lixo, com a comida, a primeira Greta Thunberg. E aqui, parece mesmo uma tendência já bem disseminada:

“Um terço das pessoas entre 18 e 25 anos hoje não ingere bebidas alcoólicas, de acordo com relatório da plataforma global Innova Market Insights. Por trás, com essa nova leva de consumidores, ascende uma cultura mais consciente sobre os efeitos do álcool no organismo e, principalmente, que busca a preservação do corpo e da mente.” (matéria de março da IstoÉ Dinheiro)

Sinto que existe um medo latente e crescente da relação com o êxtase, o arrebatamento, a beleza de se descolar um segundo da razão. Uma vez, numa conversa com o Padre Fábio De Melo, ele disse que o ser humano não vive sem o êxtase (qualquer que seja ele), que é esse breve esquecimento da realidade, e que, para poder suportar a carga da existência, é preciso ter um breve esquecimento de tudo que nos pesa. Disse também que o êxtase enquanto esquecimento da realidade não é alienação, porque depois que a gente passa por ele, a gente é devolvido à realidade de uma forma diferente, transformado pelo êxtase, voltando mais leve. “É um movimento de euforia que depois se transforma numa certa leveza.” Num bar ou num clube, não só é isso que eu busco ter, como também é o que eu busco ver e compartilhar. Não tenho medo dos comportamentos da nova geração, já não faço mais parte dela. Só me dá um aperto, perder de vista aquilo que eu tinha como ideal de sair, ficar ultrapassado no quesito do prazer.

Os clubes em Estocolmo (todos a que fui) estavam incrível e ineditamente vazios – eu diria que menos da metade de gente que eu via até 2012. Saí numa quinta, numa sexta e num sábado. No Secret Garden, eu não vi ninguém se beijando.

DRUK E OS BEBEZÕES ETÍLICOS

Em fevereiro, eu vi “Druk – Mais Uma Rodada”, e é uma delícia, um retrato de quatro adultos em crise tentando solucionar a paumolescência do cotidiano meia-boca com algumas doses. Você já deve ter visto, alguma das filhas do Silvio Santos também. Mas quem deveria ver, de fato, parece não ter visto. Então aqui vai minha dica: recomendo fortemente que o filme seja assistido pelas marcas de bebidas alcoólicas e seus publicitários. 

Já faz mais ou menos uns 5 ou 6 anos que eu vejo e ouço da indústria de bebidas um esforço brutal para promover o que chamam de “consumo consciente”, rogando-se fofa e inofensiva. Os jovens já não são tão afeitos ao porre, os coquetéis têm tendido a graduações alcoólicas mais baixas, já inventaram até uma maldição de bar de drinks sem álcool. É um movimento global. Porque, aos poucos, o discurso do bem-estar escancarou que álcool é veneno – como aconteceu com o cigarro. A vantagem é que a indústria tabagista jamais falou “fume com moderação”, ela fez análise e sabe que é cancerígena, mas também sabe o prazer que causa. Está lá estampado em cada maço de cigarros: “oi, meu nome é cigarro, eu transo bem mas te destruo, sou o famoso boy lixo”.

A caretice atual da indústria etílica me soa como uma farsa alinhada aos tempos modernos – ela só o faz porque não quer ficar para trás, passa noites insones atormentada pela ideia de ser quem é. Faz lembrar Don Draper, no primeiro episódio de Mad Men, defendendo que Lucky Strike é tostado, não venenoso. Ali, pelo menos, havia uma malícia, e não um pedido de desculpas por existir. E é logo em seguida que o próprio Don Draper diz que a publicidade é baseada tão somente em felicidade: “é o cheiro de um carro novo, um outdoor na estrada que grita com segurança que, o que quer que você faça, está tudo bem.” Na atual divulgação de destilados, não parece estar tudo bem – parece haver mais medo do que felicidade.

Anos atrás, montei o bar para um evento “open-bar” que dava direito a apenas 4 coquetéis (oi bem?), porque a marca não queria estar atrelada ao desregrado, ao alcoolismo, à cirrose de quem a consome. Parecia tratar o consumidor como um bebezão – aquele “mas só um, hein?”, que sua mãe dizia na infância. 

E eu não estou aqui para defender o consumo desenfreado de álcool, mas para dizer que a relação com a pinga é individual. Pelo menos, é o que eu vi em Druk. Para alguns, dá bom; para outros, é o fim; para uns, é só uma tacinha; eu não sou homem de uma dose só (e nem de três). A cena final, um musical redentor, não será para todos (imagino), mas ela acontece aqui e ali. Aposto nela. Se errar, a culpa é minha, não do sistema.

Esses pequenos venenos do cotidiano são parte do enfrentamento da existência e a moralização deles há de nos levar a outros deles. Como diz um amigo, “o vício é uma paixão que deu errado”. E quem há de me culpar pela minha própria paixão? Espero que as marcas de camisinha não sigam o mesmo caminho. No fim das contas, cito a Fran Lebowitz, no espetacular Faz De Conta Que NY É Uma Cidade (Netflix): “seus maus hábitos podem te matar, mas seus bons hábitos não vão te salvar”.