SABER FAZER PARA PODER CRITICAR

Posto no meu Instagram e Twitter a seguinte frase: “O crítico de restaurantes não precisa saber cozinhar bem – assim como um cozinheiro não precisa saber avaliar restaurantes. Ajuda? Ajuda. Mas não é imprescindível. Em tempo, conheço mais críticos que cozinham direito do que chefs que sabem comer bem.” O número de respostas, concordando e discordando, é imenso. Então, aprofundo aqui a discussão.

Conheço bem os dois lados e, por sorte, não dependo de nenhum deles – sou roteirista, só escrevo sobre comida neste blog e nas minhas redes sociais, por puro gosto e sem qualquer financiamento. Mas conheço bem: sou formado em gastronomia há 10 anos, fui jornalista de comida e de bebida de jornais e revistas, já fui cozinheiro, bartender, consultor, tive um restaurante e convivo com boa parte do “alto escalão” da indústria (chefs, bartenders, sommeliers, jornalistas, cozinheiros e críticos gastronômicos). Esse portfólio me ajuda a escrever sobre comidas e bebidas e bares e restaurantes? Pessoalmente, ajuda. Mas não acho que o argumento “ele não sabe cozinhar” ou “criticar é fácil, quero ver fazer” seja válido para desmerecer alguém que julga estabelecimentos gastronômicos. 

Quando o crítico de jazz Ted Gioia rebaixou Jennifer Lopez por não saber o que era uma escala pentatônica, sendo jurada do American Idol, Mike Powell (do Pitchfork) retrucou com este texto. Violinista com treinamento clássico, ele escreve:

“Fico impressionado com a maneira como Brian Wilson usou aberturas de acordes alternadas em “God Only Knows” para criar a âncora de uma linha de baixo descendente, mas não me faz gostar de “God Only Knows” mais ou menos do que eu gostaria se não entendesse. Como qualquer vocabulário especializado, a linguagem da música dá nomes às coisas que existem, quer as chamemos ou não. E quando eu assisto à conversa de “American Idol” que o Gioia cita, o que me impressiona é que Harry Connick usa sua explicação das escalas pentatônicas para descartar a performance de um determinado cantor, não para iluminá-la. Sua perícia é usada como uma arma. No final, ele parece um profissional irritadinho (salty) que não consegue apreciar a magia porque já conhece o truque.”

Vou perguntar sobre outras áreas. Para ser crítico de cinema, é necessário saber escrever ou dirigir um filme? Talvez seja muito agregador para o conteúdo da crítica que ele conheça os movimentos de um roteiro, as dificuldades de luz e som, os planos de câmera. Mas talvez também não saber não o impeça de avaliar a beleza de um filme. E talvez também isso torne a crítica uma cagação de nomes e tecnicismos, os Yngwie Malmsteen da crítica.. Acontece muito.

E, convenhamos, quando eu digo “não saber cozinhar”, fica meio óbvio que não trato de alguém que não sabe botar um miojo pra jogo – é sobre não saber a diferença técnica entre guisado e braseado, os pontos de fumaça da manteiga e do óleo de girassol, o nome de cada nível de napé de molho e tamanho de corte, como se desossa uma codorna, como se torneia uma cenoura, o tempo de cocção do carnaroli pro vialone nano… entender de comida não carece de entender de panelas – e entender de panelas não implica entender de comida – até porque, né, o tanto de cozinheiro que sabe tudo isso mas não acerta no rango… paciência.

Mas o motivo pelo qual postei era outro. O trabalho do crítico gastronômico é, em tese, comer e reportar (em geral, escrevendo). Mesmo sabendo que a dimensão técnica da gastronomia é um ótimo recurso, existem outras coisas que fundamentam melhor o bom crítico, como: comer muito, em muitos lugares bons, prestar atenção, comer de tudo e sempre. Talvez por isso muitos cozinheiros entendam menos de comer do que os foodies. Cozinheiro não tem tempo, ganha mal e, com razão, prefere frequentar lugares que não se pareçam com seu próprio ambiente de trabalho, quando está de folga.

Outra coisa que incrementa muito a habilidade do crítico é conviver com gente inteligente e que pensa e consome comida boa. As discussões, provas, disputas e corrida pelos melhores restaurantes e pratos são um combustível violento para o mundo das ideias e do conhecimento gastronômico. Mais ou menos como Fran Lebowitz disse ao Michael Bloomberg “Sabe como você chama um punhado de gente inteligente fumando e bebendo em torno duma mesa de bar? Chama-se história da arte.” Vale para o meio de gastronomia.

Eu conheço muita gente sem treinamento clássico, que não sabe o que é um mirepoix, ou distinguir um rôti de uma demi-glace, nomear todas as partes de um porco, mas que sabe comer bem, muito bem. Agora, saber comer, comer muito e pensar comida em rodas inteligentes, essa é a descrição do foodie, não do crítico. Porque, se o trabalho do crítico é comer, o brilho dele é perceber. E a percepção é um talento, que pode ser ajudado pela técnica, mas é mais fruto do pensamento poético, do olhar subjetivo, de não tratar exclusivamente sobre “gostei / não gostei”. Ou seja, o crítico é um foodie que sabe perceber e fazer os outros perceberem. É bom saber do que se trata, mas é mais importante saber o que aquilo representa. 

A maioria dos críticos que conheço, porém, sabe cozinhar, um pouco que seja – alguns são geniais; outros são até melhores cozinheiros do que críticos. Já a maioria dos chefs que conheço, muitos que inclusive admiro, come mal prum diabo. 

Então, eu reitero: saber cozinhar bem ajuda o ofício da crítica? Ajuda. É imprescindível? Acho que não. O debate está aberto.

OTEQUE

Eu costumo anotar as coisas, porque bebo, minha memória falha aqui e ali. Mas Alberto Landgraf faz questão de me lembrar repetidamente que eu fui o primeiro jornalista a escrever sobre ele neste país, quando o Epice tinha acabado de abrir. É bem possível, até porque, na época (lá por 2011, talvez?), ele mesmo não bebia uma gota sequer de álcool. O cozinheiro que passa por lugares rígidos (Alberto passou pelo Tom Aikens, Gordon Ramsay e Pierre Gagnaire) sabe que o caminho da cachaça é perigosíssimo e muito recorrente. E a decisão de não beber, pelo menos quando se está começando a decolar, é bem esperta: o Epice abriu sóbrio e determinado a mudar o padrão do que a gente comia e, com uma cozinha minúscula, fez milagre e subiu o sarrafo da comida em São Paulo. Subiu muito. O menu de almoço que custava R$39,00 (entrada, principal, sobremesa e água grátis) às vezes tinha boudin de foie gras; à noite, servia o que hoje muita gente parece tentar emular em restaurantes recém-inaugurados. Trouxe James Lowe, ensinou um pessoal a fazer carne dry-aged, botou orelha de porco frita como entrada, criou chefs e sub-chefs que estão comandando a nova cena de comida. Fez escola.

O Epice tinha falhas, claro: uma sobremesa de abacaxi que logo saiu do cardápio, um bar completamente defasado, a decoração que não condizia muito com o DNA da comida, uma carta de vinhos que, apesar de bem escolhidinha, ainda era deficitária, não tinha um sommelier no salão. Algumas falhas foram sendo corrigidas ao longo do tempo – chegou a ter Kennedy Nascimento comandando o que, hoje, eu sei que foi o melhor bar de restaurante que esta cidade já teve. Hoje eu sei, mas é tarde demais. O Epice fechou – não sei se o Alberto falhou em São Paulo ou se São Paulo falhou com ele, mas o Epice era ouro e a gente achava pouco. Que erro. Porque enquanto procurávamos nosso nióbio, perdemos Landgraf justamente para quem? Pro Rio De Janeiro, terra que até pouco tempo atrás era um deserto de boa comida.

Se, por um lado, dói ver Landgraf a uma ponte aérea de distância, por outro, é com motivo justo: o Oteque é hoje o melhor restaurante do nosso continente e com larguíssima margem, uma vaga de estacionamento para um caminhão-cegonha entre ele e o segundo colocado, seja quem for. É meu restaurante favorito do hemisfério sul. Fui três vezes e só melhora. Na última, agora no final de setembro, não vi nada fora do lugar. Os erros do Epice estão resolvidos, a começar pelo serviço.

Com Laís Aoki e Léo Silveira no comando, ambos sommeliers, o salão está sempre um passo à frente da sua vontade e outro passo atrás da sua percepção. A água é reposta o tempo todo e os pratos são retirados em silêncio, mas com um sorriso. A explicação das bebidas vem com conhecimento pleno, mas é econômica. O serviço exala competência, só que é amável, às vezes até afetuoso, e faz um jantar importante perder a pompa do constrangimento engravatado – aquele tanto de sim que você tem que ficar repetindo e concordando. A taça é Zalto, mas não precisa falar baixo. “Hoje eu bebo vinho, mas o que eu sei, foram o Léo e a Laís que me ensinaram.”, diz o chef. Não duvido. 

Aliás, eu recomendo fortemente a harmonização de bebidas (existem duas: uma mais barata e outra mais cara, ambas ótimas). Se levar em consideração o preço de uma garrafa ali, a brincadeira sai muito mais barata e vantajosa. Além disso, você está num restaurante 3 estrelas Michelin (eu quero que se foda se o Guia ainda não se tocou disso), que investe alto para que a bebida tenha tanta originalidade quanto a comida, vale a pena pedir para que eles também escolham seu mundo ideal. É, inclusive, parte do preço que se paga pela comida e serviço, ter gente muito competente para te servir melhor do que você mesmo se serviria. E a harmonização é um primor, tem amplitude de vocabulário: começa com um sakê, passeia entre os vinhos que pautam as conversas de bar dos sommeliers moderninhos, mete um natureba radical, jorram Juras e Savoies, volta para a borgonha tradicional, solta uma cerveja da Trilha, um vinho Madeira, um Jurançon, sobe pra Espanha. Além disso, tem vinhos exclusivos que, no Brasil, só existem ali. Tem Champagne? Também tem (Chartogne Taillet). Mas, como Frank Bruni costumava dizer, a diferença entre a culinária boa e a excelente é saber exatamente o ponto em que “cremoso, amanteigado e untuoso” torna-se um bolo de gordura e parar logo antes disso. Vale para o serviço de vinhos e afins. É o melhor passeio entre bebidas que já vi no país, com o maior léxico e com nenhum tiro errado, nada menor do que impecável. 

Era meu aniversário, então também ganhei uma taça de Overnoy e uma de Gabrio Bini – eles conhecem o próprio cliente. E, se não conhecem, perguntam. A arrogância a que os restaurantes estrelados chegaram é assustadora. Por que diabos ninguém mais pergunta nada ao cliente? Lembro-me que no Frantzén, em Estocolmo, me perguntaram em que lado da mesa eu gostaria que minha cadeira estivesse (mais de frente pro salão ou pra cozinha); no Per Se, me perguntaram se eu preferia que minha cortesia fosse um Sauternes ou um Madeira velho (veja bem, a cortesia). No Oteque, em determinado momento da refeição, fui perguntado se o ritmo dos pratos estava ao meu gosto, se eu preferia mais lento ou mais rápido – que cuidado raro de ser visto.

Os pratos são trazidos pelos cozinheiros, confeiteiros, pelo Nilson (o sub-chef), pelo próprio Alberto. Seria proibitivo pagar R$550 por um menu degustação e ter um garçom do Spot que caga para a sua mesa e derrama os pratos e copos no seu colo como se fosse um Linguine de patins no final de Ratatouille; mas, tão horrível quanto, seria pagar alto para não poder desfrutar do jantar e ter que ouvir uma masterclass sobre onde os vegetais foram colhidos e como aquilo que você está comendo é valioso. Aqui, novamente, a explicação é precisa: “temos ostra, picles de maçã verde e uma emulsão de ostra”. Eu só fiquei sabendo de mais detalhes do preparo porque, depois de dar a primeira (e única) bocada, perdi, perdi feio. A ostra gorda e de sabor limpíssimo veio em contraste com um sabor de mato, grama cortada mesmo. Era chique, mas era ousado, um gosto que ninguém tem coragem de botar para jogo. Perguntei o que era. “É salsinha”, me disse o Alberto. As respostas existem, mas, como em Mad Men, o silêncio fala alto para quem quer ouvir o subtexto, e ele basta. 

O Oteque também tem um aquário próprio de ostras, que fica logo ao lado da mesa da cozinha, emulando água do mar, mas livre de quaisquer impurezas (novamente, eu que perguntei). “Foi o único jeito que eu encontrei para poder servir ostras e ter a certeza de que nenhuma pessoa passaria mal saindo daqui.” Nenhum jantar pode ser tão inesquecível quanto um jantar com ostra duvidosa. Num lugar inseguro, além de todo o processo utilizado na emulsão, o chef teria se gabado da procedência das ostras, do aquário, da salsinha, talvez tivesse falado o nome do Seu Isaías, que planta só três pés de hortaliça por estação. Dá palestra quem precisa te entregar, além do próprio prato, mais provas de que aquilo vai ser bom. Por favor, não coloque a insegurança da sua cozinha na conta dos meus ouvidos.

Depois disso, vieram beterrabas com leite de castanha, pato curado e fermento seco; um atum bluefin com maionese de peixe e caviar osetra; sardinha com foie gras e brioche, um clássico que começou lá nos tempos de Epice; camarão, pirão, vinagrete de pimenta de cheiro e azedinha; arroz de músculo com bottarga e trufa italiana; sorvete de castanha do pará crua. É tudo muito bom, muito acima da média. E é acima da média não só em gosto, mas também intelectualmente – é comida moderna, sem arroubos criativos gratuitos e, mais importante, é comida mesmo, comida de verdade, não uma ideia ou piadinha culinária que o chef pensou no banho. É possível “ter uma experiência gastronômica” (que horror) sem sofrer uma gavagem de fumaças e truques culinários, sem ter 24 passos no menu. O que chamam de experiência, eu chamo de comer bem, beber à altura, ser bem servido e, ao mesmo tempo, conseguir aproveitar a mesa, a companhia, a noite. Check.

Eu não vou passar horas superadjetivando prato a prato – isso você encontra em 20 outros blogs e resenhas. Até porque, em determinado momento do jantar, bem cedo, ali pelo terceiro prato, eu parei de anotar. Não vale a pena. No Oteque, não se comem palavras, come-se comida de quem está no topo da cadeia alimentar. E, se o Epice subiu o sarrafo do que é boa gastronomia em São Paulo, o Oteque muda a regra de novo, agora para o continente. Espero que não falhemos com ele.

*Mas quanto sai a conta inteira? Depende. Acho que quem pode pagar um duas estrelas Europa pode pagar um três no Brasil; quem pode levar a família na Fogo De Chão também pode; quem pode comprar um terno bonitinho pro casamento do amigo, também pode. Agora, se você prefere ir com a família à Fogo De Chão ou comprar um terno, você pode ir ao Oteque, mas não deve.

OTEQUE

Rua Conde de Irajá, 581 – Botafogo, Rio de Janeiro

Telefone: (21) 3486-5758

Instagram: https://www.instagram.com/oteque_rj/

OS MELHORES DO MUNDO (WORLD’S 50 BEST)

Uns quinze anos atrás, lá por 2005/2006, eu assinava a Q Magazine, que lançou uma edição com os cem melhores discos da história (do rock, pelo menos). Que ousadia. Quando recebi a revista, tinha certeza de que não encontraria meus cinco favoritos sequer entre os vinte primeiros, mas era impossível não sair voando entre as páginas para confirmar minha decepção. No primeiro lugar, nada de Beatles, muito menos Rolling Stones, Bob Dylan ou Beach Boys, mas um disco do (tambores rufando) Radiohead. Sim. Sabe quem estava em segundo lugar? Ele mesmo (tambores rufando), outro Radiohead. E em décimo? Radiohead.

Três cabeças de rádio entre os dez primeiros, amigo. Acho que nunca vi a palavra ‘ridículo’ ser usada tantas vezes nos comentários de um site. Chequei meus prediletos e o mais bem colocado estava lá, em vigésimo terceiro. Humpf. Guardo a revista até hoje e, sempre que a revejo, dou risada e acho sensacional que tenham irritado tanta gente. Fico imaginando os beatlemaníacos roendo as vinte unhas de raiva, enquanto alguns adolescentes modernos esfregavam o OK Computer (do Radiohead), o The Bends (do Radiohead) e o Kid A (vejam só, do Radiohead) na cara de John, Paul, George & Ringo (que não são do Radiohead). Que delícia!

Ontem, saiu a lista anual dos 50 Melhores Restaurantes Do Mundo, da San Pellegrino/Acqua Panna. Noma em 1º, Geranium em 2º, Asador Etxebarri em 3º…  nada muito fora do previsível, mas o pessoal ainda fica puto, indignado. Meus dois restaurantes favoritos do mundo estão em 6º e 33º. Azar o meu (ou sorte, se pensar no que um primeiro lugar faz com os preços e disponibilidade dos restaurantes que ganham). É uma lista, não é absoluta, mas também não é sua – você pode fazer a sua própria, Deus permite, eu juro! 

É uma lista da indústria e feita para a própria indústria. É como o Oscar. Alguém realmente acha que Green Book foi o melhor filme de 2019? O Oscar premia para o crescimento da indústria, às vezes para dar uma lambida em determinado grupo, corporação, tem lobby para caramba, ultimamente tem privilegiado causas identitárias e discursos alinhados, tem uma agenda. Para quem sabe ver filme, ele é mais uma diversão do que uma necessidade; e se você sabe comer e discorda tanto da lista, deveria enxergá-la da mesma forma – já sabe tanto, por que precisa dela?

E digo mais: chamem do que quiserem, de marketing, de ação entre amigos, de lobby, de falcatrua, mas é uma lista que contribui sobremaneira, não só para os premiados, como para os injustiçados e para nós. No discurso final, René Redzepi (do Noma) contou o quanto ter sido o primeiro do mundo transformou a história e o cenário de gastronomia e turismo da Dinamarca inteira, onde antes “todo mundo pensava que só tinha coisa podre”. A lista fez as pessoas viajarem para um país que era inexistente no mapa gastronômico mundial; hoje é o, ou um dos, destinos mais cobiçados. Ter 16 latinoamericanos entre os 100 melhores do mundo certamente afeta o nosso cenário – porta que Alex Atala abriu e aos poucos a gente foi escancarando.

No nosso viralatismo, vi muita gente gralhando contra o único brasileiro que nos representou entre os 50, aliás, entre os 20 primeiros do mundo: A Casa Do Porco, que ficou em décimo-sétimo. Além da excelente comida que o Jefferson e a Janaína pensam, plantam, criam, cozinham e servem, o trabalho de relacionamento que fazem, com chefs latinos e do resto do mundo, com jornalistas e comedores importantes, ninguém faz – muitos por incompetência, outros por preguiça, outros por não terem as caras de fazer. A gente deveria estar vibrando e aplaudindo de pé. E agradecendo. Porque, se tem alguém neste país atraindo atenção e se esforçando para que a gente seja notado, é o casal Rueda. É capital intelectual e financeiro sendo aportado para nós em detrimento do suor deles.

Além disso, a lista do 50 Best é de ótima serventia para quem sabe ler além do óbvio. Pense no critério: são mil jurados (escolhidos com, no mínimo, algum crivo) que gastam fortunas viajando o mundo e indicando os melhores lugares em que comeram nos últimos meses. É gente calejada, conheço alguns deles, foram ao L’Ambroisie e ao Per Se algumas vezes na vida, têm milhagem de comida muito acima da média. Os votos, como a história da lista mostra, tendem a mirar em coisas novas, chefs mais jovens, gente que está fazendo um trabalho fora do padrão, dentro de uma linha editorial mais ou menos semelhante. É uma lista de tendências e, com um pouco de esperteza, dá para estudá-la e entender para onde a comida está migrando, em que os chefs estão mirando, que país ou tradição culinária despontam como promissores. Não gosta de tendência? Leia o Guia Michelin, cacete! Continua voltando no mesmo pico em que você come tão bem há vinte anos. É bem simples.

Então, eu sou a favor da lista, gosto do estilo e acompanho o prêmio ao vivo – até porque, assim como no carnaval, o melhor momento é a apuração. Mas é preciso ter leveza, saber discordar com resignação, entender que seu bistrozinho querido pode não dar as caras entre os vencedores (afinal a lista não é sua), ainda que a gente fique e deva ficar um pouco triste, decepcionado. E ela não define quem é melhor ou pior que o amiguinho – fosse o caso, acho que nem sobraria espaço para restaurantes ocidentais (ou você acha que é coincidência não ter um puto restaurante de sushi de Tóquio?) -, mas ela elenca os favoritos dos jurados nos últimos meses.

Calma, é só uma lista. É bastante relevante, mas é só uma lista e, se está incomodando, o papel está cumprido. Porque apontar para o futuro, ou pelo menos para o novo, é pedir em voz alta para que venham vinte e cinco saudosistas te dizer o quanto o passado era melhor. É difícil convencer sobre a modernidade, porque o clássico é a muleta de quem envelheceu e não se tornou um clássico, e isso para mim tem nome. Em 2006, o Radiohead ainda ditava muitas batidas, mas já tinha deixado sua digital e transformado a história da música. O Noma é meio isso, A Casa Do Porco, idem.

O OK Computer pode não ser o melhor disco da história do rock – ou pode, decide aí. Mas é um baita disco. O Noma também não é meu favorito do mundo – comi muito melhor no Frantzén, com uma semana de distância entre os dois (2010) -, mas é (ou era) também um baita restaurante e mudou e ainda muda o jeito que eu, você, e qualquer pessoa que possa pagar os lugares da lista comemos. Só não me venha com Massimo Bottura, porque aí eu fico puto… lista maldita. 🙂

*Link pra lista: https://www.theworlds50best.com/list/1-50

**Parabéns a todos os brasileiros que alcançaram o top 100 – Jefferson & Janaína Rueda, Alberto Landgraf, Gabriela Monteleone e Alex Atala, Vini Maciel e Rafa Costa E Silva. 

***Não tem sushi, mas tem o Zaiyu Hasegawa do DEN posando com foto da Mari Hirata (in memoriam) e deu um orgulhão de novo – aliás, servi drinks pros dois quando dava plantão no bar da Casa Do Porco, em 2017.

SONHOS

SONHO 01

Kennedy Nascimento assumir o bar do lobby do Fasano.

SONHO 02

Uma lei que permita fumar em 5 estabelecimentos etílicos de São Paulo. A ideia não é pela conveniência do cigarro dentro, mas por uma questão estética: alguns bares ficam muito mais lindos quando há fumaça subindo lentamente na luz do balcão. Portanto, a escolha seria feita por um conselho de arquitetos, estilistas, uma drag queen e dois senhores com litragem histórica. 

SONHO 03

Que os bares aprendam a servir cachaça na temperatura e/ou diluição corretas. A cerveja você gela, o vinho você climatiza, o whisky você dilui com gelo ou água, a vodka você mete no freezer… e a cachaça? A cachaça você toma fervendo, purona memo, na raça, indecentemente inadequada. O brasileiro é vira-latas até no porre.

SONHO 04

Um serviço de delivery que traga, junto com a maquininha do cartão, uma fritadeira portátil, para finalizar as batatas fritas na porta da sua casa.

SONHO 05

Um livro escrito por bartenders, cada um indicando um cliente que desejariam que fosse banido dos bares da cidade, com nome, motivo e uma história emblemática sobre o babaca em questão. Sugestões de título:

“Aprenda A Fazer Seu Próprio Coquetel”

“1001 Clientes Para Não Servir Antes De Morrer”

“Um Mané E A Conta”

SONHO 06

Um serviço chamado “Faxineiros Da Boemia”, que funciona da 00h00 às 08h00, limpando a zona que você e seus convidados fizeram na madrugada e deixando a casa impecável para que, quando você acorde e vá tomar sua água matinal, a primeira coisa que lhe venha à cabeça quando vir o estado da sala e da cozinha seja “Oh Glória!”.

SONHO 07

Em vez de música ao vivo, os bares poderiam colocar uns velhos para contarem histórias de bar no microfone.

O CRÍTICO IMPARCIAL

Se tem algo de que eu discordo frontalmente é que um crítico, especialmente de comida, tem que ser imparcial. Pelo contrário, eu acredito que o que torna grandes críticos grandes é justamente sua parcialidade, sua queda declarada por determinadas comidas, seu enviesamento (ou mesmo sua dureza) por conta da ascendência italiana, japonesa, peruana. Tire do crítico sua parcialidade e tirará, ainda que parcialmente, seu gosto pessoal e, mais ainda, seu estilo. É isso que nos faz amar alguns e odiar outros.

Frank Bruni, dos melhores que já pisaram neste planeta, quando assumiu o cargo de crítico de restaurantes no New York Times, deixou muito clara sua inclinação e preferência por restaurantes de cozinha italiana clássica – eu cheguei a ir ao Scarpetta por indicação dele e paguei caro por um restaurante mediano. Erro meu, que decidi seguir o gosto do outro. Bruni era estiloso, em texto e em gosto, mas ambos eram muito próprios, nunca meus, nunca seus ou dos outros.

O Robert Parker fez escola e fortuna sendo fã dos vinhos fruit-bombs e amadeirados; a Jancis Robinson tem claro apreço por Rieslings cortantes e longevos; AA Gill não era o maior entusiasta de vegetarianos (lugares e pessoas); Jonathan Gold era fã dos restaurantes étnicos de raiz; François Simon, de cozinha japonesa; o Jay Rayner prefere alguns bairros e odeia outros; o chef Ignacio Mattos, do Estela em Nova York, uma vez passou uma noite inteira reclamando para mim que o Eric Asimov (que era crítico interino do New York Times) era muito conservador para gostar do seu falido Isa. Paciência, amigo. Se você dá valor à crítica dele, dê valor ao gosto dele. Se não dá, continua cozinhando como julga direito e comendo onde acha gostoso. Não tem muito segredo.

Até porque, saibamos, críticos não têm o poder de esvaziar um restaurante de sucesso, de levar um estabelecimento à falência. Dizem que, há uns 20 anos, quando a Vejinha dava nota baixa a algum estabelecimento, no mesmo dia ele lotava – o pessoal ia conferir se a crítica estava correta e, vejam só, era a chance do chef provar o contrário. Imagina que sonho se um crítico, com meia dúzia de parágrafos, desse conta de falir o Coco Bambu, de espantar a clientela do Outback, de convencer a população a não comer mais nhoque da sorte no Quattrino? O país comeria muito, mas muito melhor. E isso é algo que o chef vaidoso e o leitor ferido não conseguem ler e pedem desesperadamente por “imparcialidade”.

Sabe quem é imparcial? O TripAdvisor, aquele infortúnio que reúne milhares de comentários de milhares de pessoas aleatórias, que colocam A Casa Do Porco e Ryo em pé de igualdade com El Mariachi, Capim Santo e Camarada Camarão. A imparcialidade é o fetiche de quem se sente injustiçado, ou a desculpa de quem se vê mal representado – em geral, gente que nunca reclama quando algum amigo fala bem por motivo de amizade. Quer reclamar do crítico que fala mal porque você acha que ele já foi disposto a isso? Reclama também da sua tia, do seu namorado, do camarada que elogiou o seu restaurante (seu mesmo ou do seu coração) pelo mesmo motivo que você fingiu achar legal aquele Zinfandel que ele levou no jantar que você fez sexta passada. Woody Allen diz que não vai ao Oscar porque, se ele aceita que um conselho pode deliberar que o filme dele é o melhor deste ano, tem que aceitar que, no ano seguinte, o mesmo conselho acha que o novo filme não é digno de nada, que é lixo. Um peso, uma medida.

Claro, algum rigor técnico é muito bem vindo, mas aí o darwinismo acaba operando. Os conservas vão dizer “ah mas o problema é que muita gente ruim acaba fazendo sucesso”, como se isso não tivesse sido a métrica do mundo desde sempre. No meu tempo, havia o Gourmet Blasé (só quem viveu sabe, Gabi), o Cukiers, os péssimos críticos de jornais e revistas, foi sempre assim. Gente boa, mesmo, sempre foi rara – as Nina Horta e Ruth Reichl, gente que tem o dom nato e ainda investe nele, acontecem muito pouco. E a elas deve-se dar o direito de serem completamente autorais, parciais, independentes (inclusive de você).

A gente lê os críticos por afinidade editorial, por um pouco de viés de confirmação, e também por confiar que naquela pessoa existe um crivo mais alto que o nosso. Seguir ou ler na esperança de que ali haja um julgamento apenas técnico é como tirar a roupa do crítico, pedir que ele tenha um parecer literalmente despido, com zero estilo e, portanto, sem alma. Desse jeito, o crítico nem deveria existir, bastaria jogar os restaurantes numa planilha de Excel.

Eu nutro a esperança de que as pessoas leiam críticas em busca de uma luz jogada onde elas nunca esperavam (ou teriam competência para jogar), em busca de uma ideia original, de uma percepção que justifique você argumentar por que motivo gostou do que gostou, que te faça comentar na firma, que garanta o discursinho pro seu próximo date, que te incentive a frequentar lugares que não cogitava. Ou, na melhor das hipóteses, pelo texto mesmo.

Em último caso, eu tenho uma dica muito boa: em vez de cobrar seu crítico de estimação de ser imparcial, de escrever segundo o seu critério, você pode simplesmente não lê-lo, não segui-lo e escrever você mesmo sua própria crítica. Quem sabe, com alguma competência, você se torne o primeiro grande crítico imparcial da história.

METZI

A pantone de sabores mexicanos aqui em São Paulo sempre foi pastel – com exceção de Dona Lourdes Hernández, da antiga Casa Dos Cariris, onde comi uma só vez. Quando não é pastel, é aquele alaranjado Clicquot, que colore o diesel que chamam de cheddar nas franquias tex-mex. No, Señor! Gracias.

Daí eu fui ao Metzi, o pico mexicano de comida meio Cosme NYC de Pinheiros (parece que o pessoal trabalhou lá mesmo). E é bom. Sólido. Tá tudo lá. É bom sim. Bem gostoso. Nota 8 da Kogut.

Digo isso repetidamente porque um lugar não precisa ser espetacular para ser bom. E, se o preço é condizente (como é no caso do Metzi, em que se pagam justos 180 reais por um menu degustação que envolve matéria prima cara e bem trabalhada), vale a pena. O salpicão de peixe e polvo, ele sim, é mais que bom, bem mais – e é estranho, funky, intenso, adulto… delicioso. O “camarão, chorizo, huatape e mojo de ajo” também é bem acima da média. O mole verde com brócolis e castanha (uma óbvia importação do Cosme) é direito, como é também o guacamole: gostoso, mas padrão, na média… tipo “Pegaria? Ah, pegaria”. A barbacoa de cordeiro também é saborosa (mais que o caldo dela). Os molhos de pimenta são blasés e esquecíveis – dá para botar uma colher de chá e passar despercebido. Os pratos são lindos, o esquema permite compartilhar, a mesa vai bem. As sobremesas, eu passo.

No que não diz respeito à comida, o Metzi é mediano: as cadeiras são marromeno, o ambiente é quente (26ºC confirmados graças ao medidor de temperatura e umidade do Alex), a música é meio alta e, por vezes, chatinha, um coquetel pode ser bem gostoso (Paloma) e, em seguida, outro pode ser bem doce (Tequilita). Há poucos vinhos, todos de uma só importadora, Uva Vinhos, como eles fazem questão de informar (sabe Deus por quê). O ritmo dos pratos também é estranhamente super rápido. Termina de comer um, chega outro e outro… Está tudo um passo antes do incômodo. Não é, mas é quase. Já o serviço é ágil, discreto e simpático, a mesa está sempre limpa, a garçonete tem senso de humor.

O Metzi é bem vindo. Come-se bem. Mas me venderam como se, nossa, alguém tivesse trazido Oaxaca na mala – ouvi gente que preferiu o Metzi ao Cosme (não duvido e o hype é parecido). A sensação é como a que tive com “Parasita”, que é um filme divertido, bem feito, bem atuado e com bons momentos. Ele nada sozinho numa piscina com 8 raias, portanto é ouro na categoria. Mas não justifica essa gritaria toda.

Instagram: @metzirestaurant

Rua João Moura, 861, Pinheiros