Acabo de ler a coluna de hoje da jornalista Farrah Storr para o britânico The Times, em que ela conta de sua péssima experiência de £1200,00 no Noma e aponta o culto que se criou em torno do restaurante, questionando (na abertura e no fechamento do texto) “Quem decide o que é bom gosto hoje em dia? São jornalistas? Inspetores da indústria? Ou aqueles que gritam mais alto na internet? […] Ou é o indivíduo com a refeição à sua frente; o jovem curioso com o livro de Roald Dahl no colo e a mulher de meia-idade que percebe que acabou de comer um pênis de rena de £100 com gosto exatamente de salada de nozes da Marks and Spencer.”
Eu fui ao Noma em janeiro de 2010, quando ainda não era o nº1 do mundo, tinha almoço executivo de três pratos e ficava ali nas docas de Copenhague. Era bom, mas não tão memorável quanto achei que seria. Também servia comida mais comum do que serve hoje: cenouras com caldo de cordeiro, vinagre e tutano; um vitelo com alface; rabanetes com (o que era super cool na época) “terra comestível”; lagostim com emulsão de salsinha, com o bicho levemente amornado pelo calor da pedra de basalto em que ele repousava; tinha até um doce em forma de boneco de neve. Lembro que saí de lá feliz, tentando concatenar o que a nova cozinha nórdica (que naquele tempo ainda era, de fato, nova) queria dizer ou entregar ou transformar. Com apenas 24 anos, eu era mais um entusiasta do que exatamente um erudito. Cheguei a escrever depois pro caderno Paladar, do Estadão, mas acho que dei mais ênfase ao Frantzén/Lindeberg (atual Frantzén), de quem até hoje sou fã.
Storr parece ter avistado outros jovens atuais equivalentes ao meu eu de 2010: gente empolgada e disposta a compreender o que uma refeição pode entregar além do sabor. E não falo sobre entregar experiência, serviço lúdico e surpresas de circo, mas sobre entregar pensamento novo.
“Noma agora parece um culto para adorar, em vez de um restaurante para comer. Eu me pergunto se isso é o que acontece quando você está no topo há tanto tempo quanto ele.”, diz o texto dela. Farrah diz ter se sentido traída, póbi.
Eu não quero defender o Noma, ou a comida do Noma, até porque, como disse, não é que eu me lembre de lá como o almoço mais fantástico da vida. Mas quero defender a ideia do Noma, ou a ideia de ir ao Noma, que Farrah Storr parece ter, se não compreendido mal, no mínimo, negligenciado. Não fez a lição de casa.
Não se vai ao Noma com o mesmo propósito que se vai ao Chez Josephine, em Paris. Fosse para comer um rango nose-to-tail (ou nose-to-penis, como ela nomeia, com ligeiro asco de ter ingerido pedaços de pênis de rena, de surpresa no meio duma salada), ela poderia ter ido ao ótimo St John Bread & Wine, em Londres, bem mais perto de casa, sem fazer reserva, num lugar informal e à la carte, mais barato e que serve comida boa e cotidiana, ponto final.
O Noma não joga nessa divisão. O Noma joga na divisão dos apresentadores de movimentos, de tendências, de novidades, no lugar do desconcerto, do pouco usual. Não acho que isso torne a comida melhor – aliás, muitas vezes, torna-a estranha ou até ruim. Mas ali é a passarela do Fashion Week gourmet, não a Zara ou uma loja de prêt-a-porter. Não se senta na primeira fila do Paris Fashion Week para assistir ao desfile da Comme Des Garçons esperando que Rei Kawakubo tenha desenhado peças para você vestir numa ida à padaria da esquina. O vestido invertido da Viktor & Rolf não deve ser muito confortável. Esperar ver ali roupas cotidianas ou de fácil acesso visual é esperar que o Noma entregue o que você já estava aguardando – o que seria, neste caso, bastante preguiçoso do muitas vezes nº1 do mundo.
É justamente a Rei Kawakubo (e outros estilistas) contestar formas, propor novas silhuetas, botar na passarela roupas que uma galera considera feias, que faz 90% da molecada ter abandonado o skinny jeans, retomado roupas largas e confortáveis – que já foram consideradas feias mas que, com algum tempo e boa vontade, tornam-se bonitas e populares de novo. E é justamente o Noma (e outros chefs) ter levantado a bola da comida local, das redondezas, do menor desperdício, e ter proposto novos sabores, agigantado as técnicas de fermentação, que transformou e, como Storr reconhece, “influenciou tudo, desde a maneira como comemos até como pensamos sobre a terra ao nosso redor.”. De fato, chego a pensar que o Noma não está mesmo lá para agradar, mas para propor.
E aí, por não ter gostado da comida do Noma, Storr diz ter se sentido julgada por outras pessoas, inclusive pelos garçons (o que é realmente um horror), e questiona novamente “Quem decide o que é bom e o que é ruim?”. Uma pergunta tão relevante quanto antiga – como “quem decide o que é arte?” ou “o que é ter bom gosto?”. E não é tão difícil de responder: neste sentido amplo, de determinar os novos queridinhos, apontar o nº1 do mundo, o ingrediente da vez, quem decide o que é bom e o que é ruim é a indústria – da qual ela mesma faz parte. São, como ela lembra, jornalistas, estudiosos, os próprios chefs, os críticos e inspetores, influenciadores… não é pouca gente. Também não é um conselho de 10 pessoas que diz “a partir de hoje vai todo mundo comer penas de galinha”. É um conselho impalpável de pessoas que, no devir do zeitgeist, vão se alinhando com determinados estilos e tendências e novidades que, quando combinados com técnica, frescor e alguma ousadia (sempre com dinheiro aportado) acaba silenciosa e homeopaticamente elegendo os novos bonitões da vez. E, aliás, o Noma parece já estar com os dias contados neste trono – até pelas acusações de abuso e trabalho mal remunerado.
No sentido mais restrito, quem decide o que é bom e o que é ruim para si mesmo é, em última instância, o indivíduo. Assim como você pode vestir a roupa que quiser, você pode gostar do restaurante que quiser. Se isso vem com um ônus de desaprovação social, vai depender da roda de pessoas com que você anda. Estar vestido fora de moda na casa dos meus tios não bate errado; na baladinha cool desenhada pras pessoas se montarem no look moderno, talvez te torne um peixe fora d’água. Você tem duas opções: ignorar o julgamento e se divertir; ou ir embora e não mais frequentar o lugar. Ninguém te obriga a gostar do Noma e, veja bem, ninguém te obriga a comer lá. E também ninguém te proíbe de falar mal. “Procurei online para ver se havia outras experiências como a nossa. E com certeza lá estavam dezenas de pessoas que tiveram uma experiência semelhante.”, diz o texto da Farrah Storr. Estão lá o Tripadvisor é o Yelp pra galera descer a lenha e enaltecer os Camarada Camarão, Outbacks e congêneres. Também estão aí os Instagrams e TikToks pra galera fazer post que eu, particularmente, considero de gosto duvidoso. Posts com milhares de likes, centenas de milhares de visualizações cheias de cheddar derretido em cima de sushi safado e carpaccio de salmão com gelo seco.
Por fim, tem um fator que corre paralelo a tudo isso. Para muita gente, o Noma é uma aventura única, um dinheiro economizado com força e é muito difícil você falar mal da sua única viagem da vida ao exterior. É quase obrigatório achar deslumbrante. Só consegue reclamar da viagem ao Chile quem já foi e sabe que pode continuar indo a outros lugares do mundo – é raro a gente sabotar o próprio orgulho assim. Falar mal do Noma custa uma pequena fortuna e, neste caso, não é todo mundo que tem a chance. Então é natural que muita gente saia de lá metralhando elogios,.
De novo, longe de mim defender a comida do Noma, que nem sei como anda hoje em dia. Mas me parece um chilique questionar a ideia mundial de bom gosto simplesmente porque você não gostou do novo disco da Rihanna. Ir ao Noma e achar que não vai encontrar uma cambada de foodies 100% dispostos a amar tudo que o René Redzepi puser na mesa me parece, acima de tudo, um autoengano – ou, talvez, uma vontade desesperada de pertencer a um meio de pessoas que você, pelo menos assim de longe, parece não gostar. Faz pouco sentido.
***o link para o texto da Farrah Storr está aqui: https://farrah.substack.com/p/the-terrifying-cult-of-good-taste?r=zi254&utm_medium=ios&utm_campaign=post