HACKEANDO A COVID

Acabo de positivar para COVID e, no terceiro dia de sintomas leves, assim do nada, eu perdi o paladar e o olfato. Tipo, perda total, 100%, e totalmente do nada. Eu tinha almoçado bem, ganhado um arroz de bochecha com brócolis da Talitha Barros, um pão de queijo quentinho, tava uma delícia. O cansaço (ou o tédio) me fez cochilar sem querer à tarde e, quando acordei, fui comer a empadinha de camarão que a Talitha também tinha mandado. Zero. Nada. Void. Vácuo de cheiro e de sabor. Não tinha nada ali. E o desespero bateu.

Mandei mensagem pros meus pais, pros amigos, li uns quinze artigos online. A doença é estranhíssima e as sensações são muito diferentes do que eu já tinha sentido com outras doenças. Além do desânimo, tive uma pequena confusão mental, é bem doido. O primeiro sintoma que eu tive, veja bem, foi um enjoo depois de beber cerveja. E já são mais de dois anos de gente contaminada relatando perda de olfato e paladar, mas até acontecer comigo, minha noção era completamente nula sobre o sentimento que dá – especialmente para alguém que, como eu, vive para comer e beber. Toda a fonte de prazer parecia ter se esgotado. 

Comecei a fazer testes. Peguei uma gota de molho de pimenta Carolina Reaper da PYM, que tenho na geladeira, e provei. Ploft. Enfim, uma sensação. E não só de picância. Também dava para sentir um acidinho do molho. Tomei um chá gelado e também tinha algo ali – a princípio, achei que era sabor de tosta, mas era só algo de doçura e amargor. Conversando com a Fabiana Caffaro, que teve Covid recentemente, ela me fez entender que os sabores se vão, mas os gostos continuam perceptíveis: doce, amargo, salgado e azedo. Isso foi bem revelador, o cérebro luta mas a língua não se rende por completo. E foi a própria Fabiana que me deu a melhor dica: comprar sunomono. Faz sentido, porque as conservas em geral, os picles, levam sal, açúcar, vinagre… os gostos básicos estão lá e ainda tem a textura. Eu não tinha sunomono, mas tinha outras duas conservas japonesas: gari shoga e fukujinzuke. Testei. 

Para quem está num buraco negro de sabor, é uma salvação. Porque são gostos possíveis de sentir. E como você não percebe mais nada, tipo nada mesmo, pode ainda fazer a rapa na despensa e liberar os insumos vagabundos ou próximos a vencer, misturar mamão com jiló, quinoa com páprica defumada, leite condensado com torresmo, ração do gato com pasta de dente: é tudo a mesma coisa. O sabor se perde, mas o gosto fica. E a fome também. Então comer ainda dá prazer, pelo menos até passar a fome.

No meu caso, eu peguei um tagliatelle que estava aberto, uma lata de atum para ter alguma proteína, um maço de cebolinha cansada, meia cebola, sal e pimenta do reino. A isso, somei o gari shogá e o fukujinzuke. Para qualquer pessoa em estado normal, seria um nojo; para mim, foi lindo. Além disso, há ingredientes variados o suficiente para suprir os nutrientes que o corpo precisa. 

A outra solução para a falta de olfato e paladar tem sido a imaginação. Eu juro que fico buscando mentalmente o sabor das coisas que não sinto. E o doido é que, a partir das texturas específicas, é possível projetar alguns sabores, ainda que homeopaticamente. Você tem o léxico e a referência daquilo, eles sobrevivem no seu cérebro. No fundo, é semelhante a uma masturbação, com a diferença de que eu já comi a maioria dos alimentos que eu gostaria.

A perda de olfato e paladar, apesar de assustadora, é um bom gatilho para prestar atenção à comida e entender o que tá em jogo quando a gente come. Porque quando você percebe a textura separadamente de gosto e sabor, a função dela fica muito mais evidente, é parte fundamental da (excuse my french) degustação.

Não sei por mais quanto tempo vou estar nesta situação, tem gente que fica 2 dias, teve gente que ficou 6 meses. Estou dando o truque, tentando hackear a doença, mas espero sair logo da fase da punheta.

LE FIGADO EXPRESS 02

O QUE ESTAMOS BEBENDO?

Frappato COS (Wines4U, R$215)

A Sicília é o lugar a que eu gosto de recorrer quando quero beber algo aborgonhado sem esfolar o bolso. Em geral, os Nerello Mascalese do Etna é que oferecem esse serviço de suplente geográfico para quem não pode gastar um Fiat Elba numa garrafa, mas o Frappato da COS, um pouco mais ao sul da ilha, cumpre perfeitamente. Eu sou muito partidário (e parcial na avaliação) de tintos leves, e gosto porque este é um vinho para iniciados e iniciantes (eu já apresentei com sucesso para, vejam só, Carlinhos Maia). É descomplicado, porém delicioso e cheio de estilo, não faz feio com ninguém. Com o verão do sacripantas que se aproxima, eu já deixaria engavetado na adega, ali junto dos brancos.

O QUE ESTAMOS COMENDO?

Art & Richies (@artandrichies

Vou ser sucinto: nada, absolutamente nada, do que eu comi da Art & Richie’s foi menos do que excelente. Do Patê En Croute de galinha d’angola com foie gras e pistache à rillette de pato e a terrine de coelho com ameixas, as salsichas e o boudin blanc, a espetacular mostarda caseira. Charcutaria e conservas de altíssimo padrão.

Alerta: eu vou desejar duas doenças venéreas para cada Robert que vier me perguntar (favor ler fazendo aquela voz de idiota com a boca torcida) “Mas é melhor que A Table Charcutaria?”. Gente que vive de comparação não vive de prazer. Em tempo, os dois são muito, mas muito, bons.

O QUE ESTAMOS VOMITANDO?

Nathans’ Famous Hot Dog, essa importação mais desnecessária que o Benihana, poderia ter ficado em Coney Island, custando 2 dólares. É um lixo? Não. Vale a pena? Também não. Salsicha numa bisnaga safada, com ketchup e mostarda. Para não ser injusto, o corn dog e a mostarda que veio com ele estavam direitinhos (e apenas direitinhos). O resto, pode prestigiar o pessoal da Seara mesmo, que cê sai no lucro.

O QUE ESTAMOS LENDO?

Cocktail Culture Has a Nostalgia Problem

Artigo da Punch, enviado pelo Bernardo, que versa sobre o fetiche da indústria coqueteleira por um formato único, enquadrado num só curto período da história etílica, e que limita o progresso da própria indústria. Talvez, isso que a gente chama de “coquetelaria clássica” seja mais uma zona de conforto do que exatamente um indicativo de excelência.

https://punchdrink.com/articles/cocktail-culture-has-a-nostalgia-problem/?utm_campaign=later-linkinbio-punch_drink&utm_content=later-19351142&utm_medium=social&utm_source=linkin.bio

O QUE ESTAMOS OUVINDO?

quickly, quickly – The Long And Short Of It

Indicação do Léo, amigo de muito bom gosto musical, saiu esta semana e é o melhor disco do ano até agora, com folga. Que raro é o equilíbrio entre a pouca obviedade e a naturalidade – as pinceladas de estranheza e quebra de tempo são conscientes, sem parecer um “olha como eu faço loucurinhas”. É desconcertante e, ao mesmo tempo, fácil de ouvir. De nadinha.

LE FIGADO EXPRESS 01

O que estamos bebendo?

Jean-Claude Lapalu Beaujolais Nouveau (R$196 na @delacroixvinhos )

Beaujolais Nouveau já foi das maiores armadilhas disfarçadas de nome pop e slogan que conhecíamos até uns 10 anos atrás… Os importadores anunciavam “le beaujolais nouveau est arrivée!”, que eu recebia com o mesmo entusiasmo que “seu tio tá convidando todo mundo para ir ao puteiro!”. A cena mudou, ufa.

Recém-chegado na De La Croix Vinhos, é o vinho mais feliz e vivo e sedutor que provei recentemente. 

– “É Grená?”, perguntou a Dani.

– “É Gamay”, retruquei.

Eu achando que ela tentava uma pronúncia vergonhosa para Grenache, quando na verdade ela falava da cor, que, sim, é grená. Um grená turvo e brilhoso. A boca é fresca e saborosa, cheia de energia, ótima para ser o primeiro vinho do dia, o pontapé inicial para começar, ao mesmo tempo, com algo curioso, mas informal – que não vai tomar conta das conversas por mais 8 horas, com seus aromas e notas organolépticas palavrentos. It’s a joy!

O que estamos comendo?

Tarta De Queso Redemolino, da Thaís Gimenez (@thaisgimenez)

Se lhe pedirem dica de cheesecake, tão difícil de encontrar bem feito por aí, cola nesta Tarta De Queso, um cheesecake do País Basco muito vitorioso. Leve, com acidez, açúcar na medida e, como a Thaís, linda.

Eu dei o apelido de “melhor confeiteira indie da cidade” pra Thaís, não foi à toa. E, na minha época, os indies eram mais blasés e inacessíveis. Cumprindo minha premonição, ela se tornou um hit das tortas (de quejio, de maçã, de pêra) e hoje a produção esgota poucas horas depois de postada no Instagram, indiezona do coroio. Vai por mim: reserve com antecedência e seja feliz.

O que estamos vomitando?

Numa visita ao Moma Mia (eu juro), bar do Modern Mamma, tomei o Dry Martini mais errado da década; comi uma burrata maçaricada com presunto cru e rúcula; um carpaccio que parecia comprado no Dia%, uma tagliata com molho feito na usina. Tudo uma bosta, inclusive o serviço desatento. Nota 0 da Kogut.

O que estamos vendo?

Mare Of Easttown

Me venderam Mare Of Easttown (HBO) como, nossa, um tiro de 12 na cara, um desbunde. A Kate Winslet realmente está em plenitude pouco vista, baita personagem, baita atuação. Mas uma série policial em que a única coisa imprevisível é quem é o assassino jamais vai se sustentar por conta de uma atriz excelente. Episódio a episódio, a série só piora e parece ter menos vergonha dos clichês. O final é ruim e, pior, quando termina, fica apenas uma pergunta: “como foi que cheguei até aqui?”. Nota 0 da Kogut.

O que estamos lendo?

Na verdade, relendo.

1. Um texto de 2010, chamado “To Enhance Flavor, Just Add Water”, do Harold McGee para o New York Times. Aula atemporal sobre como a diluição é uma das melhores ferramentas para construção e percepção de aromas e sabores. 

2. A crítica de 2004 do Pitchfork ao disco “Funeral”, estreia do Arcade Fire. O Pitchfork era bom porque, concordando ou discordando, tinha texto lindo e firme. Segue abaixo a tradução da abertura, espantosamente escrita há 17 anos.

https://www.pitchfork.com/reviews/albums/452-funeral/

“A nossa geração é dominada pela frustração, inquietação, pavor e tragédia. O medo é totalmente difundido na sociedade americana, mas mesmo assim conseguimos construir nossas defesas de maneiras sutis – zombamos dos níveis de “ameaça” arbitrários e codificados por cor; recebemos nossas informações de comediantes e rimos dos políticos. Na virada do século 21, conhecemos bem o nosso isolamento. Nossa solidão autoimposta nos torna política e espiritualmente inertes, mas, em vez de tomar medidas para curar nossas feridas emocionais e existenciais, optamos por nos deleitar com elas. Consumimos o martírio afetado de nossos supostos ídolos e o cuspimos de volta em um desafio zombeteiro. Esquecemos que “emo” antes era derivado da emoção e que, em nossa compra e venda de dor pessoal, ou na aproximação cínica dela, não sentimos nada.”