Posto no meu Instagram e Twitter a seguinte frase: “O crítico de restaurantes não precisa saber cozinhar bem – assim como um cozinheiro não precisa saber avaliar restaurantes. Ajuda? Ajuda. Mas não é imprescindível. Em tempo, conheço mais críticos que cozinham direito do que chefs que sabem comer bem.” O número de respostas, concordando e discordando, é imenso. Então, aprofundo aqui a discussão.
Conheço bem os dois lados e, por sorte, não dependo de nenhum deles – sou roteirista, só escrevo sobre comida neste blog e nas minhas redes sociais, por puro gosto e sem qualquer financiamento. Mas conheço bem: sou formado em gastronomia há 10 anos, fui jornalista de comida e de bebida de jornais e revistas, já fui cozinheiro, bartender, consultor, tive um restaurante e convivo com boa parte do “alto escalão” da indústria (chefs, bartenders, sommeliers, jornalistas, cozinheiros e críticos gastronômicos). Esse portfólio me ajuda a escrever sobre comidas e bebidas e bares e restaurantes? Pessoalmente, ajuda. Mas não acho que o argumento “ele não sabe cozinhar” ou “criticar é fácil, quero ver fazer” seja válido para desmerecer alguém que julga estabelecimentos gastronômicos.
Quando o crítico de jazz Ted Gioia rebaixou Jennifer Lopez por não saber o que era uma escala pentatônica, sendo jurada do American Idol, Mike Powell (do Pitchfork) retrucou com este texto. Violinista com treinamento clássico, ele escreve:
“Fico impressionado com a maneira como Brian Wilson usou aberturas de acordes alternadas em “God Only Knows” para criar a âncora de uma linha de baixo descendente, mas não me faz gostar de “God Only Knows” mais ou menos do que eu gostaria se não entendesse. Como qualquer vocabulário especializado, a linguagem da música dá nomes às coisas que existem, quer as chamemos ou não. E quando eu assisto à conversa de “American Idol” que o Gioia cita, o que me impressiona é que Harry Connick usa sua explicação das escalas pentatônicas para descartar a performance de um determinado cantor, não para iluminá-la. Sua perícia é usada como uma arma. No final, ele parece um profissional irritadinho (salty) que não consegue apreciar a magia porque já conhece o truque.”
Vou perguntar sobre outras áreas. Para ser crítico de cinema, é necessário saber escrever ou dirigir um filme? Talvez seja muito agregador para o conteúdo da crítica que ele conheça os movimentos de um roteiro, as dificuldades de luz e som, os planos de câmera. Mas talvez também não saber não o impeça de avaliar a beleza de um filme. E talvez também isso torne a crítica uma cagação de nomes e tecnicismos, os Yngwie Malmsteen da crítica.. Acontece muito.
E, convenhamos, quando eu digo “não saber cozinhar”, fica meio óbvio que não trato de alguém que não sabe botar um miojo pra jogo – é sobre não saber a diferença técnica entre guisado e braseado, os pontos de fumaça da manteiga e do óleo de girassol, o nome de cada nível de napé de molho e tamanho de corte, como se desossa uma codorna, como se torneia uma cenoura, o tempo de cocção do carnaroli pro vialone nano… entender de comida não carece de entender de panelas – e entender de panelas não implica entender de comida – até porque, né, o tanto de cozinheiro que sabe tudo isso mas não acerta no rango… paciência.
Mas o motivo pelo qual postei era outro. O trabalho do crítico gastronômico é, em tese, comer e reportar (em geral, escrevendo). Mesmo sabendo que a dimensão técnica da gastronomia é um ótimo recurso, existem outras coisas que fundamentam melhor o bom crítico, como: comer muito, em muitos lugares bons, prestar atenção, comer de tudo e sempre. Talvez por isso muitos cozinheiros entendam menos de comer do que os foodies. Cozinheiro não tem tempo, ganha mal e, com razão, prefere frequentar lugares que não se pareçam com seu próprio ambiente de trabalho, quando está de folga.
Outra coisa que incrementa muito a habilidade do crítico é conviver com gente inteligente e que pensa e consome comida boa. As discussões, provas, disputas e corrida pelos melhores restaurantes e pratos são um combustível violento para o mundo das ideias e do conhecimento gastronômico. Mais ou menos como Fran Lebowitz disse ao Michael Bloomberg “Sabe como você chama um punhado de gente inteligente fumando e bebendo em torno duma mesa de bar? Chama-se história da arte.” Vale para o meio de gastronomia.
Eu conheço muita gente sem treinamento clássico, que não sabe o que é um mirepoix, ou distinguir um rôti de uma demi-glace, nomear todas as partes de um porco, mas que sabe comer bem, muito bem. Agora, saber comer, comer muito e pensar comida em rodas inteligentes, essa é a descrição do foodie, não do crítico. Porque, se o trabalho do crítico é comer, o brilho dele é perceber. E a percepção é um talento, que pode ser ajudado pela técnica, mas é mais fruto do pensamento poético, do olhar subjetivo, de não tratar exclusivamente sobre “gostei / não gostei”. Ou seja, o crítico é um foodie que sabe perceber e fazer os outros perceberem. É bom saber do que se trata, mas é mais importante saber o que aquilo representa.
A maioria dos críticos que conheço, porém, sabe cozinhar, um pouco que seja – alguns são geniais; outros são até melhores cozinheiros do que críticos. Já a maioria dos chefs que conheço, muitos que inclusive admiro, come mal prum diabo.
Então, eu reitero: saber cozinhar bem ajuda o ofício da crítica? Ajuda. É imprescindível? Acho que não. O debate está aberto.
Caramba, Sucras. Seus textos são fenomenais.
Escreva mais nesse espaço. É clamor da nação.
Em tempo, uma coisa que tem me incomodado cada vez mais: sou de BH e aqui os “influencers” se tornaram “críticos”. Quanto mais essas páginas crescem, mais ele vão se tornando publicitários de grandes restaurantes: Gero, todos do Léo Paixão, cervejarias bosta, etc etc, e isso se tornou uma punheta comunitária insuportável. Tem uma famosa “Degustatividade”, que inclusive escreve pra jornais aqui, que tá em todo lançamento, fazendo os “cursos” de chefs, participando de confrarias dos chefs, e você vai ler, é só texto 100% elogiando, não tem nada, por exemplo, falando do balanço do prato, da acidez que claramente falta quando falamos sobre Paixão, da falta de sal, da falta de alma. Se tem Rusty Marcelini fazendo algo pra algum restaurante ou supermercado, certeza de que estarão lá. Tem um lançamento de algo importante, estão lá esses “, e no dia seguinte pode ter certeza que esses trabalhos medíocres certamente estarão nos jornais com a certeza de que tudo é perfeito, está perfeito e sempre será perfeito.
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Obrigado pelo comentário.
Não me incomoda esta cena de influenciadores que se tornaram críticos – na verdade, eles sempre existiram, mesmo que conhecidos por outros nomes, e sempre divulgaram os mesmos restaurantes. Se têm audiência, é porque há uma porção do público que gosta disso. A quem odeia, basta não lê-los. A cena de lugares bosta elogiados por influenciadores é antiga e imagino que será perpétua. Dei uma entrevista pro Estadão falando sobre isso, mas duvido que publiquem. Logo escrevo a respeito. Pense pelo lado positivo: se esta gente que os acompanha está frequentando os lugares merda, pelo menos não está sentada na mesa ao lado da sua, em lugares melhores.
Abraço
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Apenas passando pra deixar claro que se precisar pagar pra que tenhamos mais textos, eu pago!
Vida longa ao LE FIGADO!
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Opa, muito obrigado! Serei gratuito enquanto for possível, mas é bom saber que há quem não leia só pela gratuidade. 🙂
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Assino embaixo. Endosso a ideia. 2 textos p/ semana, que tal? Já completamente ansioso para o próximo. Vida longuíssima ao Le Figadô.
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dois não garanto. tenho 3 empregos, amigo. mas vou postando o quanto for possível. pra semana que vem já tem tem texto pronto.
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Sucras, sobre o seu fim de semana, confesso que agüei na batidinha de maracujá! Teria como passar a receitinha ai para seus fiéis leitores, hihihi? Obrigado
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