
Existem provadores competentes e existem provadores alegóricos. Faço parte do segundo grupo: não busco (nem sou bom em buscar) notas de caramelo e resina, aquela fruta específica que brota no aroma de um vinho, o nib de cupuaçu que se sente no fim de boca. Eu procuro entender as qualidades básicas (acidez, amargor, persistência, álcool, volume, peso, intensidade, etc) e, principalmente, o estilo. Aliás, eu prefiro o estilo ao rigor técnico: gosto mais da oralidade do Emicida, que ignora plurais e concordâncias, mas tem estofo intelectual e linguagem própria, do que do discurso de muito acadêmico – meus dois piores professores de faculdade eram doutores pela Sorbonne; prefiro a caipirinha do Jiquitaia, feita e servida com carinho, do que um drink espalhafatoso, que leva quatro dias para ser produzido, envolve cinco técnicas novas e duas máquinas… estilo e conteúdo, no fim das contas, valem mais do que o checklist de ensino médio.
Além dos dois tipos de degustadores, existe um terceiro: o que é competente e também alegórico. Por isso, combinei com a Laís Aoki, sommelière do Oteque (o melhor restaurante do país), de irmos juntos à nova loja de sakês do Fábio Ota: a Mega Sakê. A ideia era conhecermos o espaço, uma casinha linda nos Jardins, e provarmos as novas bebidas que o Fábio está importando. Com a Laís, além de adorar a companhia e o estilo dela mesma, eu tinha uma degustação mais rigorosa garantida. Conosco, estavam a Nayara Tonani (cozinheira do Oteque), a Michelly Rossi (que, entre tantas qualidades que eu vivo enunciando, ainda tem a paciência de ser minha amiga) e o próprio Fábio Ota, o verdadeiro especialista em sakês da roda (o Fábio é o primeiro e único brasileiro a conquistar o título de Master Sake Sommelier).

A loja ainda não abriu, acho que em até um mês deve começar a atender pessoa física, mas já está montada. Alguns sakês ainda estão para chegar, outros estão em processo de liberação governamental, aqueles carimbos todos pelos quais o importador precisa se aventurar antes de conseguir vender uma garrafa ou trocar um rótulo. No primeiro salão, fica o portfólio da casa, já com preço e fichas técnicas à vista. Na parte dos fundos, um sake bar, que servirá pequenas porções de comida (otsumami) em colaboração com o Egashira (Kan Suke), e uma Enomatic, que permite ao comprador conhecer os sakês antes de comprá-los ou fazer o que eu fiz, provar 7 tipos numa sentada.
Provamos Junmai Daiginjo, Ginjo, Honjozo, sakê de mesa, e até um Azuma Kirin, a título de comparação. Para minha ótima surpresa, a gama de sakês que o Fábio trouxe difere muito dos estilos a que eu estava acostumado, parece ampliar o léxico da bebida no país. Em geral, são sakês menos gordos e mais frescos, a maioria com boca bem elegante e notas menos superlativas. Entre tudo, destaco:
Toko Junmai Ginjo Cho-Karakuchi: um estilo meio esquizofrênico, aromático no nariz e super seco na boca. Em japonês, “cho” é muito, e karakuchi é “seco”. A Laís percebe uma nota láctea. Faz sentido. É curioso justamente por essa discrepância entre o que o nariz anuncia (aromas vivos) e o que a boca imprime (austeridade), uma água da fonte mais mineral de todas. É como estar nas montanhas lambendo mármore. Para quem gosta de provar com carinho, ele rende uns 30 segundos de caretas e desconcerto. (R$259)
Miyako Homare Dry: sakêzão de mesa, vendido numa caixa de dois litros, que custa R$150 reais. Um dos ótimos sakês de guerra que já provei. É menos agressivo do que os rusticões, para beber frio, em quantidades generosas e, se me permite, servir sem culpa nem prejuízo de qualidade pro pessoal que fica na sua casa bebendo até as 3 da manhã. Sentiu que a galera já está entortando a cara e não merece mais coisa tão fina? Miyako Homare Dry neles. Sua gerente bancária agradece. (R$150)
Por fim, quero destacar a estrela daquela manhã etílica (começamos às 11am):
Gassan Hojun Karakuchi Junmai: aqui, o estilo bateu e bateu forte, joga no time dos mais elegantes do universo etílico. O nariz é gentil, tem fruta limpa – a Laís canta “algo como suco de uva verde” -, ele sussurra como um Vouvray classudo. É jovial e delicado. A boca é puríssima, limpa, como os Riesling austríacos, mais seco e cortante.. Quando ganha temperatura, engorda e fica mais cremoso. Não sei se eu amo isso. Eu gosto dele mais frio, quase intelectual, Timothée Chalamet lendo um livro no canto da sala. Ele te fita. Um gole não é suficiente, a língua pede mais informações, e elas vêm no segundo trago. Quanta sutileza, que delícia. (R$235)

O Gassan Hojun Karakuchi Junmai é produzido em Shimane, aos pés do Monte Gassan. É dele que desce a água, em processo lentíssimo, até o Rio Iinashi. Segundo uma das muitas lendas e reivindicações, Shimane é a província onde nasceu o sakê. E a mesma lenda conta que em determinado dia do ano (o Fábio não soube especificar qual), todos os deuses se reúnem por lá para fazer uma reunião, uma cúpula que vai decidir o futuro. Por isso, é o dia em que as outras províncias são abandonadas pelos deuses. Mas eu não sou idiota para acreditar em lenda. Cúpula é um caralho. Os deuses vão a Shimane é para encher a fuça dessa delícia.
*A Mega Sakê fica na Rua Joaquim Eugênio De Lima, 1416.
Instagram: @megasake
Website: https://www.megasake.com.br/

Cara, seu trampo neste zine tá incrível! 👏🏻👏🏻👏🏻
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ótimo texto. a categorização dos provadores é exata. sobre saques temos muito ainda a descobrir, muito bom saber que novos trampos sérios estão sendo feitos. apenas por curiosidade, como se saiu o Azuma Kirin na comparação?
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Mano, cê escreve demais! Me tornei leitor assíduo do seu trampo. Abraço, camarada
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Que time de bons narizes e paladares bem referenciados. Como devo proceder para fazer clones da Laís? Asking for a friend. ❤
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