VERMUTE & TERNO ARMANI

Eu tenho uma crítica chatinha para fazer à indústria vitivinícola brasileira: tirando um pessoal muito legal (em geral, de projetos mais recentes), a média do produtor de vinhos brasileiros é de caipiras enfiados em ternos Armani. E o caipirismo, tenho lugar de fala, não se refere à origem geográfica, mas a um desejo de se parecer com os grandalhões, tipo quem usa boina só porque está em Paris. Não é surpresa que os vinhos se pareçam com seus donos. São produtos embalados em roupas que não lhes representam, garrafas opulentas, com aqueles fundos em que dá para fazer um fisting, bem caras e com apelidos completamente desnecessários no rótulo: premium, collector’s, selection, winemaker’s choice… que preguiça. O produto nesta embalagem, como os donos em ternos Armani, não está chique: está fantasiado. Às vezes é isso, e às vezes é o tio gordão que grita, calça jeans comprada na Flórida, dá carteirada em porta de restaurante e constrange a tia do balcão da TAM porque ele comprou de econômica mas quer dar um upgrade de última hora pra executiva. Esta figura superlativa é ainda pior, um estereótipo meio repulsivo. 

*NOTA: falo aqui dos vinhos de uma indústria grande, que é quem toca o grosso da produção nacional e tem zero interesse em ser diferente disso. Os esforços, aliás, não são para que isso mude, basta olhar para a salvaguarda dos vinhos nacionais, que não raro entra em pauta. 

Uns 5 anos atrás, eu inventei de fazer um vermute com os dois gênios que comandam a Morada Cia Etílica, André Junqueira e Fernanda Lazzari. E eu não tinha a menor dúvida de que, estando amparado por gente tão competente, conseguiria criar um produto bom. O primeiro passo, porém, antes de criar a receita, foi o mais doloroso de todos: achar um vinho decente e com preço idem que servisse como base para o vermute. Foram meses deles dois viajando e me enviando amostras pelo correio. Era tudo, ou ruim, ou caro demais para caber no nosso objetivo. Acho que levou mais de um ano conversando com os enólogos e negociando a produção, até enviarmos amostras de vermutes com o perfil de que mais gostávamos. Tardou, mas chegou: um cara encontrou uma combinação de Moscato Giallo com outra uva que já nem me lembro e fez uma espécie de cozimento dela, estilo Vinho Madeira. Bingo. Quer dizer… a realidade é mais dura do que os sonhos e logo já surgiram problemas de logística e de negociação que inviabilizaram o projeto. Era muito trabalho para algo que, a princípio, seria um bom hobby. Desistimos.

Enquanto a produção de vinhos brasileiros se mantiver no conforto de seus preços e sua qualidade, enquanto o preço para se tomar algo minimamente ok começar em R$30 (com MUITA sorte), enquanto os tios mirarem mais no esquema de latifundiário do que de agricultor, o consumo nacional de vinho decente vai continuar nesse limbo aí de pouco mais de dois litros anuais per capita. Essa lenda que contam que “ai, na Itália, você senta em qualquer bistrozinho e o vinho de 3 euros é maravilhoso” é mentira de quem está deslumbrado com o local e passa um dia inteiro na Via Del Corso, em Roma. Mas ele existe, o puto do vinho de 3 euros. Ele é bom? Não. Mas é potável. E é disso que se faz a mesa média do europeu: de vinho marromeno, mas que habita quase diariamente a vida do cidadão. 

E é talvez por isso que a produção brasileira de vermutes é quase inexistente. Houvesse vinho direito a preço acessível, a probabilidade de termos uma cena local de vermutes e vermuteiros seria altíssima – só olhar rapidinho pra Argentina. Por aqui, não. A gente vive de Carpano Classico, Punt e Mes, Martini, Dolin, Antica Formula pros mais ricos e… e já começam a me faltar outros nomes. Se não for isso, sabe o que temos que beber? Ele mesmo, o velho e triste Cinzano.

Isso também complica diretamente a cena de coquetelaria – porque, com a alta do dólar, o custo de meter 30ml de bom vermute no seu Negroni, Hanky Panky ou Manhattan, será altíssimo – espere só a reabertura dos bares para ver o tamanho do estrago.

Agora, existe gente que, ao contrário de mim, não encara isso como um hobby. A Cris Beltrão, do Bazzar (Rio De Janeiro), é das pessoas mais estudiosas e empenhadas que conheço. Mais que isso, ela investe em coisas que ninguém tem coragem, e por pura paixão às bebidas – basta ver os vinhos disponíveis por taça, no Bazzar… coisas que, juro, a clientela dela não deve nem passar perto, infelizmente. E foi assim que, milagrosamente, chegou aqui em casa uma caixa da Cris com duas garrafinhas do novo vermute deles.

Eu costumo concordar por antecedência com a Cris – ela prova bem, come bem, é uma ratazana de restaurantes desconhecidos, conhece tudo, viaja o mundo inteiro, e tem referência para cacete. Conheço pouca gente com dicas tão certeiras quanto as dela… Paris, Nova York, Malta, Pyongyang. Não deu outra: o vermute do Bazzar é uma aula inaugural de alto nível para que a cena local comece bem localizada.

Em primeiro lugar, penso que é um vermute mais para se beber puro do que para misturar em coquetéis. Ele está alinhado aos vermutes modernos, em que há mais elementos nítidos do que nos classicões – gosto de ambos estilos. Mas o primeiro elemento que eu noto (na cor e no nariz) é um alívio: o vinho base é bom. Acho que é por isso que eu estou mais inclinado a bebê-lo puro do que enfiá-lo em coquetéis… talvez, fazendo as vezes do vinho num New York Sour, ele brilhe. E é essa mesma cor e nariz que revelam a grande beleza do vermute do Bazzar: ele é fresco, leve e pronto para ser bebido logo, longe daquele diesel caramelado que vemos nos produtos super industriais. O nariz tem álcool bem integrado e o ataque mais direto é um aroma meio junino (canela e gengibre talvez, o lírio-do-brejo, certamente), mas tem notas verdes e bem especiadas também. Chega a lembrar um pouco o primeiro ataque de Sacred Spiced Vermouth (calma, gente), mas com menos intensidade. Aliás, isso é grande ponto a ser feito, porque é um vermute nada superlativo. Pelo contrário, é equilibrado, os aromas estão lá, mas ninguém sai gritando, os aromas não furam fila. A boca tem volume, uma gordurinha, e confirma os botânicos do nariz. É menos doce que a média, tem amargor sutil e taninos finos. E, o melhor, dá vontade de beber mais e mais. 

Provei puro em temperatura ambiente (19ºC), depois com gelo, e depois com 15 minutos de congelador, o que lhe rendeu sua melhor performance. Resfriá-lo sem diluir rende uma textura mais firme e licorosa – mas com gelo e casca de laranja também deu bom. Não sou expert em vermutes, mas sou um fã inveterado há mais de uma década, volto(ava) do exterior com a mala cheia deles, vários, de todos os países, já acertei e já errei. A falta de boa produção local talvez também implique um déficit de bons bebedores locais, eu incluso. Com tempo e milhagem etílica, porém, vai se criando o gosto. O que se busca num vermute, para mim, é distinto do que se busca num vinho – talvez mais próximo dos objetivos de um coquetel. Para quem quiser se aprofundar, em janeiro a Arnica Rowan publicou um ótimo artigo sobre como provar vermutes, no site da Jancis Robinson (rainha, o resto nadinha). Vale muito a leitura. Segue o link:

https://www.jancisrobinson.com/articles/how-taste-vermouth

Não sei qual é o vinho base do vermute do Bazzar – sei que é orgânico e brasileiro (vitória!) e que o produto final não leva conservantes ou aromatizantes. Também não sei o preço porque tenho a sorte de ter amigos como a Cris – que luxo, ser amigo dos seus ídolos. Por enquanto, só está disponível para comprar no Rio De Janeiro. É uma pena, mas é um golaço.

*Edit: o vermute do Bazzar é filho do @aragaowilton.

@crisbeltrao
@bazzar_procedencia
@bazzar_restaurante

5 thoughts on “VERMUTE & TERNO ARMANI

  1. É totalmente off-topic, mas tenho um puta medo de comprar bebida falsa na internet, principalmente se for de terceiros, caso do Beefeater 24 à R$120 na Amazon. Você já teve esse azar?

    Comentando aqui porque não quis encher teu saco no Instagram. Li todos os posts da zine e queria te dizer que você escreve muito bem. Continue com o projeto! Abraços

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  2. Obrigado, cavalheiro.
    Bem, acho que a promoção de hoje na Amazon era vendida e despachada pela própria Amazon, não por terceiros ou pessoa física, o que reduz as chances de falsificação a quase zero. Nunca tive o azar, pois compro de fornecedores confiáveis. Se vaza a notícia de que a Amazon ou o Extra, o PdAçúcar, qualquer empresa grande, estejam vendendo coisas falsificadas, eles se ferram muito – então acho bem improvável.
    abraço

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  3. Um ótimo começo para um projeto tão normal e ao mesmo tempo tão ousado! Quanto mais boas opções nacionais tivermos, melhor para todo mundo. Ainda sonho com o dia de incontáveis opções de bons vemutes nacionais. Boas bebidas criam bons bebedores e precisamos desesperadamente destes.

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