O primeiro ataque no nariz traz uma memória dificílima: os porres da adolescência revividos em HD. A nota, de cara e sem refletir muito, não é de uva, é de galão. O projeto Americanas da Gabriela Monteleone assusta. Porque pro cidadão em processo de gourmetização, ele representa o caminho inverso. Depois que você entra para o universo dos “vinhos finos” (que nomenclatura brega, meu Deus), parece um caminho sem volta. Como assim, agora que eu estou me afeiçoando e aperfeiçoando no universo dos vinhos, me sentindo ousado por gostar de Beaujolais, encantado por Savoie, dizendo que Savennières é minha região favorita (porque chenin é chenin, né?)… voltando, como assim um vinho de uva bordô? A saber: Bordô é tipo Isabel, aquelas uvas malditas e ditas não-viníferas – as “mais de mesa, Pederneiras”.
Eu provei ontem o Americanas. E não é que eu não tenha uma opinião formada: eu tenho setenta e cinco opiniões formadas sobre ele. Estou completamente perdido, andando pela casa com a taça em riste, entupindo o Whatsapp da Gabriela com áudios intermináveis e tentando entender se a aversão ao cheiro de vinho de galão é culpa minha ou do sistema, de sei lá quem. Eu pareço um esquerdomacho pedindo desculpas por existir e querendo entender meus preconceitos. Sou o eno-feministo. E é por isso que eu quis escrever sobre ele. Porque ele não é um vinho, é uma discussão, é pauta para jogo.

Mas vou ao vinho antes, e depois a ela, a discussão. O primeiro ataque, como eu disse, é um cheiro forte, mas sinto informar ao meu próprio cérebro que é um cheiro de fruta – só que é uma fruta da qual eu tenho ranço e trauma. Eu que lute. Agora, na boca, é a primeira vez que entro em contato com um vinho Isabelão bem vinificado. Passado o obstáculo da memória desafetiva, a boca é facílima, sem arestas, um vinho claramente feito por gente profissional, não por um zé das couve que largou os engaços lá para Deus vinificar e bola para frente. É, sem dúvida, um vinho de galão, de garrafão, não muda a vida de ninguém, não abrirei em nenhuma boda. Mas tá lá, é um vinho, é firme no que entrega e imagino que haja um um espaço claro onde ele deva transitar, talvez um passo possível para quem tem neste formato a única referência vínica – o país não é feito só de nós. Não compre para surpreender enoiniciados, o terreno aqui é outro, o tipo de uva também.
Mas isso é do ponto de vista organoléptico. Do ponto de vista editorial e intelectual, é uma provocação. As uvas “americanas”, essas que fazem vinho de pobre (não vou de eufemismo, amor), respondem por mais de 60% do consumo brasileiro. Me parece um pouco viralatismo não olhar para o que o país tem de sobra e decidir o que fazer com aquilo. É tipo só andar de metrô em Paris, assistir ao Mais Você legendado. Mas longe de mim querer falar em descolonização do paladar, criticar o eurocentrismo. Eu e você e nossos colegas de firma que pedem comida no Ma-kin-Thai somos devotos de São Overnoy, eu adoro o vinho fino, mesmo com esse nome. Mais que isso: eu gasto metade do meu salário em bebidas caras e anchovas do Cantábrico. Mas não consigo olhar para esse projeto e não achar do caralho.
O sommelier e a sommelière, muito além de servir vinho em restaurante de ocasião, têm a função de falar com produtores, olhar o mercado, sintetizar um pouco do zeitgeist e do pensamento corrente sobre bebidas, na oferta que lhe fazem à mesa. O projeto das Americanas faz refletir, em primeiro lugar, sobre “com quem estamos falando”. E é inadmissível que a sommelerie brasileira não tenha dado tanta atenção para esse aspecto até hoje. Também põe em debate nossa relação com os cheiros que aprendemos a odiar – e outros que, cafonas que somos, aprendemos a endeusar.
A minha recomendação é, por enquanto, não chamar de vinho. Ou não pensar como vinho. Vale o esforço de, em vez de pensá-lo como mais um tipo de uva (pinot noir, meunier, merlot), pensá-lo como outra fruta (tipo caju, jabuticaba, butiá, qualquer uma). Assim, perde-se a comparação – como o quibe de abóbora, que não é quibe, mas pode ser bom.
Em segundo lugar, eu recomendo provar como exercício intelectual e tentar entender os porquês daquilo ser considerado algo menor. Quando digo “aquilo”, não falo deste rótulo em especial, falo do espectro todo, daquele perfil de aromas e sabores estar descascando batata no porão da nossa paleta de gostos. Por que diabos este seria um aroma menor? Porque é fedido, e não cheiroso? Quando foi e de quem que a gente comprou essa ideia? Deve ser por motivo de abundância, aquilo de quanto mais exclusivo, mais caro e, portanto, melhor. Não sei se está errado. Não sei mesmo.
Eu tendo a pensar que o universo das bebidas vai (na verdade já está) expandir território e se desamarrar dos concretismos: vinho só disso, as 9 ou 10 classes de destilados (rum, whisky, gim, vodka, cognac etc) – quase acompanhando as discussões de gênero que temos hoje, saindo um pouco desse binarismo senil que nos faz pensar “isso ou aquilo”. E se meu vermute não tiver losna? “Ai, não pode chamar de vermute”. E se minha caipirinha for feita com um pouco de vodka porque a cachaça acabou no meio da dose? “Ai, não me chame de caipirinha”. Brigar por nomenclatura, para mim, é muleta de canalha. Mas tudo bem, eu posso não chamar de vinho, de vermute, de caipirinha. Eu posso chamar de Moacir, se eu quiser. Mas brigar por nomenclatura é priorizar uma perfumaria em vez do conteúdo.
Como, para mim, o futuro das bebidas está no desengaço das tradições, eu acho que daqui a alguns anos eu vou pagar pau para mim mesmo por ter pagado pau para este projeto da Gabriela hoje. Não se enganem, não é um projeto para baratear o vinho (para isso ela tem os vinhos de growler lá): é uma escolha estética, pensada com carinho, e feita para foder com o meu fim de semana, porque até segunda-feira eu estarei com o nariz e a cabeça enfiados dentro da taça tentando reconhecer meus privilégios de hétero-branco-cis… brinks, nem hétero eu sou. Mas eu me senti provocado e estou inquieto com a ideia de que somos todos um bando de bundões e xiitas por motivo inútil. É bom que o mundo do vinho saia para além das taças e entre um pouco nas nossas ideias. Até segunda-feira.
O nome é massa,le parabéns!
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Que baita texto, Danilo! Longa vida ao blog. abraços
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Excelente, meu caro. Faço essa reflexão com a cachaça. Tá certo que existem “cachaças” e “Cachaças”, mas por que, de forma geral ela é considerada “um destilado menor”?
E a questão do vermute, me pega no sangue, né… Essa é uma discussão para termos em volta de uma garrafa de Virgulino Ferreira – Vermute Brasileiro! (é… Tivemos que por vermute brasileiro na marca, pois como classificação não pode, pois não é de uva e nem tem losna). 😉
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obrigado!
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Vida longas aos nossos figadôs!
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pois que venha essa discussão em volta de muitas garrafas!
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Já quero conhecer esse Americanas… Parabéns pelo texto. Ando numa fase de desmistificar todo aprendizado acumulado…ainda mais os relacionados a enogastronomia.
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mande feedbacks!
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Parabéns pelo blog.
Belíssimo texto pra iniciar!
Vida longa!!!
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Belíssimo texto. Diálogo pertinente com o leitor. “Americanas” vou eu…vamos nós! Que assim seja! Até segunda.
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Tomei semana passada e fiquei exatamente como você disse: com o nariz na taça o fim de semana inteiro. Gostei tanto da garrafa grande que tirei até selfie. O gosto de vinho de garrafão me trouxe excelentes lembranças.
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a mim, péssimas memórias. mas muito boas ideias. avante.
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Parabéns pelo texto, adorei.
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Adorei! Por aqui sempre trabalhamos para contradizer todos os “ai, isso não pode” do mundo etílico com o infalível “teste do copo”.
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Irado a experiência heim
Já tomei vinhos bem vinificados de uvas americanas aqui em Urussanga – SC.
Nunca estavam equilibrados, faltava acidez, faltava tanino.
Aprendi com alguns enólogos que isso é normal vindo dessas uvas.
Procede ou será que é possível fazer um vinho equilibrado com essas uvas ?
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