O NOMA E QUEM DECIDE O QUE É BOM E O QUE É RUIM

Acabo de ler a coluna de hoje da jornalista Farrah Storr para o britânico The Times, em que ela conta de sua péssima experiência de £1200,00 no Noma e aponta o culto que se criou em torno do restaurante, questionando (na abertura e no fechamento do texto) “Quem decide o que é bom gosto hoje em dia? São jornalistas? Inspetores da indústria? Ou aqueles que gritam mais alto na internet? […] Ou é o indivíduo com a refeição à sua frente; o jovem curioso com o livro de Roald Dahl no colo e a mulher de meia-idade que percebe que acabou de comer um pênis de rena de £100 com gosto exatamente de salada de nozes da Marks and Spencer.”

Eu fui ao Noma em janeiro de 2010, quando ainda não era o nº1 do mundo, tinha almoço executivo de três pratos e ficava ali nas docas de Copenhague. Era bom, mas não tão memorável quanto achei que seria. Também servia comida mais comum do que serve hoje: cenouras com caldo de cordeiro, vinagre e tutano; um vitelo com alface; rabanetes com (o que era super cool na época) “terra comestível”; lagostim com emulsão de salsinha, com o bicho levemente amornado pelo calor da pedra de basalto em que ele repousava; tinha até um doce em forma de boneco de neve. Lembro que saí de lá feliz, tentando concatenar o que a nova cozinha nórdica (que naquele tempo ainda era, de fato, nova) queria dizer ou entregar ou transformar. Com apenas 24 anos, eu era mais um entusiasta do que exatamente um erudito. Cheguei a escrever depois pro caderno Paladar, do Estadão, mas acho que dei mais ênfase ao Frantzén/Lindeberg (atual Frantzén), de quem até hoje sou fã.

Storr parece ter avistado outros jovens atuais equivalentes ao meu eu de 2010: gente empolgada e disposta a compreender o que uma refeição pode entregar além do sabor. E não falo sobre entregar experiência, serviço lúdico e surpresas de circo, mas sobre entregar pensamento novo.

“Noma agora parece um culto para adorar, em vez de um restaurante para comer. Eu me pergunto se isso é o que acontece quando você está no topo há tanto tempo quanto ele.”, diz o texto dela. Farrah diz ter se sentido traída, póbi.

Eu não quero defender o Noma, ou a comida do Noma, até porque, como disse, não é que eu me lembre de lá como o almoço mais fantástico da vida. Mas quero defender a ideia do Noma, ou a ideia de ir ao Noma, que Farrah Storr parece ter, se não compreendido mal, no mínimo, negligenciado. Não fez a lição de casa. 

Não se vai ao Noma com o mesmo propósito que se vai ao Chez Josephine, em Paris. Fosse para comer um rango nose-to-tail (ou nose-to-penis, como ela nomeia, com ligeiro asco de ter ingerido pedaços de pênis de rena, de surpresa no meio duma salada), ela poderia ter ido ao ótimo St John Bread & Wine, em Londres, bem mais perto de casa, sem fazer reserva, num lugar informal e à la carte, mais barato e que serve comida boa e cotidiana, ponto final.

O Noma não joga nessa divisão. O Noma joga na divisão dos apresentadores de movimentos, de tendências, de novidades, no lugar do desconcerto, do pouco usual. Não acho que isso torne a comida melhor – aliás, muitas vezes, torna-a estranha ou até ruim. Mas ali é a passarela do Fashion Week gourmet, não a Zara ou uma loja de prêt-a-porter. Não se senta na primeira fila do Paris Fashion Week para assistir ao desfile da Comme Des Garçons esperando que Rei Kawakubo tenha desenhado peças para você vestir numa ida à padaria da esquina. O vestido invertido da Viktor & Rolf não deve ser muito confortável. Esperar ver ali roupas cotidianas ou de fácil acesso visual é esperar que o Noma entregue o que você já estava aguardando – o que seria, neste caso, bastante preguiçoso do muitas vezes nº1 do mundo.

É justamente a Rei Kawakubo (e outros estilistas) contestar formas, propor novas silhuetas, botar na passarela roupas que uma galera considera feias, que faz 90% da molecada ter abandonado o skinny jeans, retomado roupas largas e confortáveis – que já foram consideradas feias mas que, com algum tempo e boa vontade, tornam-se bonitas e populares de novo. E é justamente o Noma (e outros chefs) ter levantado a bola da comida local, das redondezas, do menor desperdício, e ter proposto novos sabores, agigantado as técnicas de fermentação, que transformou e, como Storr reconhece, “influenciou tudo, desde a maneira como comemos até como pensamos sobre a terra ao nosso redor.”. De fato, chego a pensar que o Noma não está mesmo lá para agradar, mas para propor. 

E aí, por não ter gostado da comida do Noma, Storr diz ter se sentido julgada por outras pessoas, inclusive pelos garçons (o que é realmente um horror), e questiona novamente “Quem decide o que é bom e o que é ruim?”. Uma pergunta tão relevante quanto antiga – como “quem decide o que é arte?” ou “o que é ter bom gosto?”. E não é tão difícil de responder: neste sentido amplo, de determinar os novos queridinhos, apontar o nº1 do mundo, o ingrediente da vez, quem decide o que é bom e o que é ruim é a indústria – da qual ela mesma faz parte. São, como ela lembra, jornalistas, estudiosos, os próprios chefs, os críticos e inspetores, influenciadores… não é pouca gente. Também não é um conselho de 10 pessoas que diz “a partir de hoje vai todo mundo comer penas de galinha”. É um conselho impalpável de pessoas que, no devir do zeitgeist, vão se alinhando com determinados estilos e tendências e novidades que, quando combinados com técnica, frescor e alguma ousadia (sempre com dinheiro aportado) acaba silenciosa e homeopaticamente elegendo os novos bonitões da vez. E, aliás, o Noma parece já estar com os dias contados neste trono – até pelas acusações de abuso e trabalho mal remunerado.

No sentido mais restrito, quem decide o que é bom e o que é ruim para si mesmo é, em última instância, o indivíduo.  Assim como você pode vestir a roupa que quiser, você pode gostar do restaurante que quiser. Se isso vem com um ônus de desaprovação social, vai depender da roda de pessoas com que você anda. Estar vestido fora de moda na casa dos meus tios não bate errado; na baladinha cool desenhada pras pessoas se montarem no look moderno, talvez te torne um peixe fora d’água. Você tem duas opções: ignorar o julgamento e se divertir; ou ir embora e não mais frequentar o lugar. Ninguém te obriga a gostar do Noma e, veja bem, ninguém te obriga a comer lá. E também ninguém te proíbe de falar mal. “Procurei online para ver se havia outras experiências como a nossa. E com certeza lá estavam dezenas de pessoas que tiveram uma experiência semelhante.”, diz o texto da Farrah Storr. Estão lá o Tripadvisor é o Yelp pra galera descer a lenha e enaltecer os Camarada Camarão, Outbacks e congêneres. Também estão aí os Instagrams e TikToks pra galera fazer post que eu, particularmente, considero de gosto duvidoso. Posts com milhares de likes, centenas de milhares de visualizações cheias de cheddar derretido em cima de sushi safado e carpaccio de salmão com gelo seco. 

Por fim, tem um fator que corre paralelo a tudo isso. Para muita gente, o Noma é uma aventura única, um dinheiro economizado com força e é muito difícil você falar mal da sua única viagem da vida ao exterior. É quase obrigatório achar deslumbrante. Só consegue reclamar da viagem ao Chile quem já foi e sabe que pode continuar indo a outros lugares do mundo – é raro a gente sabotar o próprio orgulho assim. Falar mal do Noma custa uma pequena fortuna e, neste caso, não é todo mundo que tem a chance. Então é natural que muita gente saia de lá metralhando elogios,.

De novo, longe de mim defender a comida do Noma, que nem sei como anda hoje em dia. Mas me parece um chilique questionar a ideia mundial de bom gosto simplesmente porque você não gostou do novo disco da Rihanna. Ir ao Noma e achar que não vai encontrar uma cambada de foodies 100% dispostos a amar tudo que o René Redzepi puser na mesa me parece, acima de tudo, um autoengano – ou, talvez, uma vontade desesperada de pertencer a um meio de pessoas que você, pelo menos assim de longe, parece não gostar. Faz pouco sentido.

***o link para o texto da Farrah Storr está aqui: https://farrah.substack.com/p/the-terrifying-cult-of-good-taste?r=zi254&utm_medium=ios&utm_campaign=post 

SOBRE O “LE JAZZ”

Chegou aqui em casa um livro do Le Jazz, escrito pelo Luiz Américo. Ainda não li, mas o troço é bem embaladinho e conta o que, para mim, é uma das histórias mais subestimadas da gastronomia paulistana recente. Eu já consigo ouvir o barulho do chilique antes mesmo de me explicar e de te irritar de verdade.

O Le Jazz nunca se pretendeu um bistrô de foodies. Até foi, bem lá no início, quando era impossível conseguir uma mesa. E aí, por não contemplar a classe de comedores do circuito conhecido e ter feito sucesso, expandido, aberto novas unidades, ele se tornou meio inimiguinho do meio foodie. E, de certa forma, com razão. O público que frequenta o Le Jazz parece ter uma relação menos comprometida com só a comida – pessoas que saem para desfrutar mais da mesa do que dos pratos à mesa. Também tem bastante mauricinho de Vans (ô, raça), playboy de Vert (ô, raça) e patricinha tomando seus espumantes e aperóis. Dividir o mesmo salão com essas pessoas? O foodie não gosta.

**(PEQUENO INTERLÚDIO PARA A DEFINIÇÃO DE FOODIE (texto que escrevi em 2016, no Facebook)

Mas a verdade é que a gente deveria agradecer ao Le Jazz. Em primeiro lugar porque, se esse público está frequentando uma casa a que você não vai, esse mesmo público não vai se sentar ao seu lado nas casas a que você vai. Olha que vitória, irmão. Em segundo, e muito mais importante, é porque, justiça seja feita, o Le Jazz meio que inaugurou a boa cena de comida no bairro de Pinheiros/Vila Madalena. Antes dele, quem tava lá sabe, existia pouca gente por aqui – o Chou e o Arturito e nem sei se tinha mais alguém relevante, talvez o São Cristóvão e o Sabiá, mais na linha “botecos de boa comida”. Quando o Le Jazz chegou, a Rua Dos Pinheiros era um inferno com El Kabong, Twin Burger e o que mais houvesse de pior no quesito “boa comida”. A chegada do Le Jazz talvez seja o marco que define a transição de Pinheiros como um bairro senil e de classe média para um destino gourmet para quem vem de São Paulo ou a São Paulo, do resto do Brasil e do mundo. Foi muito clara a transferência de status dos Jardins, que foi ficando no esquecimento, apenas com restaurantes irreputados (hoje retomando o fôlego), para Pinheiros. E foi muito logo. Em dois anos, tinha um monte de gente abrindo no bairro – do Tan Tan ao Boca De Ouro, Izakaya Matsu ao Chef Vivi, o Hirá, vish, conte aí as dezenas de opções excelentes com que o bairro conta hoje. Também veio com bom preço. Em setembro de 2012, dez anos atrás, tinha pratos a R$25,00, como me lembra meu Twitter. Na época, o preço era muito mais discrepante dos outros restaurantes franceses do que hoje, e isso ajudou a baixar a várzea que estava virando o preço médio dos cardápios inflacionados. 

Agora, a outra justiça que deve ser feita é que o Le Jazz, com todo o horror que o meio foodie criou a ele, não serve comida aquém da maioria dos bistrôs de São Paulo. Sejamos francos. O cardápio não é lá tão diferente. Com alguma deferência para o Ici Bistrô (porque tem umas rãs deliciosas e ótimas asinhas de frango), outro pouco pro Vôtre Brasserie (pelas espetaculares batatas fritas), uns pratos do La Casserole, a cena de cozinha francesa de São Paulo não é assim um primor. Aliás, em muitos lugares carésimos, a comida é deprimente. E, convenhamos novamente, o público nos outros bistrôs franceses também não é tão mais adorável assim. Nalguns, trocam-se as patricinhas pelas peruas, os playboys de Vans pelos de coletinho espumado e senhores carteiradores e abraçadores de maîtres. 

Claro, o Le Jazz é um hit e, algo mais difícil de conquistar, um hit já com idade para ser clássico da cidade. E quando um comércio se multiplica, é natural que ganhe ares de padronização, perca aquele tom de “é uma família de classe média baixa tocando o rolê, suando e pagando os boletos na unha”, como o foodie médio gosta de romantizar. Mas, dizia o Tom Jobim, “no Brasil, sucesso é ofensa pessoal”. Agora, imagina que, no lugar do Le Jazz, neste formato e com este público, poderia ser muito pior, poderia ser um horror, poderia ser uma espécie de Pecorino francês. 

Sabendo escolher, o Le Jazz tem boa língua com purê (que o chef não me mate, mas eu sempre pergunto se dá para trocar o molho mostarda, que é mais doce, por molho au poivre) por R$56; aliás, o próprio steak au poivre é bom; steak tartare e moules et frites de bom padrão; umas tartines gostosas; hachis parmentier. Ontem comi um linguado à dorê decente (com licença para o arroz jasmim, que tava bem maomeno). Já comi errado? Já. Já comi bem? Muitas vezes.

Pela conveniência de abrir todos os dias e o dia inteiro (meio-dia à meia-noite sem parar) e ter um pote de mostarda dijon Maille à disposição de todas as mesas, e segurar o padrão do rango dentro do que promete, a comida do Le Jazz é mais do que aceitável, é um bom negócio – para eles e para nós.

*Post enquadrado na categoria “Como irritar pessoas e não comer ninguém em troca”, que é título da minha autobiografia que nunca lançarei. Volto em setembro.

HACKEANDO A COVID

Acabo de positivar para COVID e, no terceiro dia de sintomas leves, assim do nada, eu perdi o paladar e o olfato. Tipo, perda total, 100%, e totalmente do nada. Eu tinha almoçado bem, ganhado um arroz de bochecha com brócolis da Talitha Barros, um pão de queijo quentinho, tava uma delícia. O cansaço (ou o tédio) me fez cochilar sem querer à tarde e, quando acordei, fui comer a empadinha de camarão que a Talitha também tinha mandado. Zero. Nada. Void. Vácuo de cheiro e de sabor. Não tinha nada ali. E o desespero bateu.

Mandei mensagem pros meus pais, pros amigos, li uns quinze artigos online. A doença é estranhíssima e as sensações são muito diferentes do que eu já tinha sentido com outras doenças. Além do desânimo, tive uma pequena confusão mental, é bem doido. O primeiro sintoma que eu tive, veja bem, foi um enjoo depois de beber cerveja. E já são mais de dois anos de gente contaminada relatando perda de olfato e paladar, mas até acontecer comigo, minha noção era completamente nula sobre o sentimento que dá – especialmente para alguém que, como eu, vive para comer e beber. Toda a fonte de prazer parecia ter se esgotado. 

Comecei a fazer testes. Peguei uma gota de molho de pimenta Carolina Reaper da PYM, que tenho na geladeira, e provei. Ploft. Enfim, uma sensação. E não só de picância. Também dava para sentir um acidinho do molho. Tomei um chá gelado e também tinha algo ali – a princípio, achei que era sabor de tosta, mas era só algo de doçura e amargor. Conversando com a Fabiana Caffaro, que teve Covid recentemente, ela me fez entender que os sabores se vão, mas os gostos continuam perceptíveis: doce, amargo, salgado e azedo. Isso foi bem revelador, o cérebro luta mas a língua não se rende por completo. E foi a própria Fabiana que me deu a melhor dica: comprar sunomono. Faz sentido, porque as conservas em geral, os picles, levam sal, açúcar, vinagre… os gostos básicos estão lá e ainda tem a textura. Eu não tinha sunomono, mas tinha outras duas conservas japonesas: gari shoga e fukujinzuke. Testei. 

Para quem está num buraco negro de sabor, é uma salvação. Porque são gostos possíveis de sentir. E como você não percebe mais nada, tipo nada mesmo, pode ainda fazer a rapa na despensa e liberar os insumos vagabundos ou próximos a vencer, misturar mamão com jiló, quinoa com páprica defumada, leite condensado com torresmo, ração do gato com pasta de dente: é tudo a mesma coisa. O sabor se perde, mas o gosto fica. E a fome também. Então comer ainda dá prazer, pelo menos até passar a fome.

No meu caso, eu peguei um tagliatelle que estava aberto, uma lata de atum para ter alguma proteína, um maço de cebolinha cansada, meia cebola, sal e pimenta do reino. A isso, somei o gari shogá e o fukujinzuke. Para qualquer pessoa em estado normal, seria um nojo; para mim, foi lindo. Além disso, há ingredientes variados o suficiente para suprir os nutrientes que o corpo precisa. 

A outra solução para a falta de olfato e paladar tem sido a imaginação. Eu juro que fico buscando mentalmente o sabor das coisas que não sinto. E o doido é que, a partir das texturas específicas, é possível projetar alguns sabores, ainda que homeopaticamente. Você tem o léxico e a referência daquilo, eles sobrevivem no seu cérebro. No fundo, é semelhante a uma masturbação, com a diferença de que eu já comi a maioria dos alimentos que eu gostaria.

A perda de olfato e paladar, apesar de assustadora, é um bom gatilho para prestar atenção à comida e entender o que tá em jogo quando a gente come. Porque quando você percebe a textura separadamente de gosto e sabor, a função dela fica muito mais evidente, é parte fundamental da (excuse my french) degustação.

Não sei por mais quanto tempo vou estar nesta situação, tem gente que fica 2 dias, teve gente que ficou 6 meses. Estou dando o truque, tentando hackear a doença, mas espero sair logo da fase da punheta.

DEATH AND TAXES

Pego carona no post do Julio Bernardo, sobre cobrança de rolha, para falar sobre outras taxas cobradas por alguns estabelecimentos de comida e bebida. 

Eu vou contar um segredo, não sei se é de domínio público, não sei se já espalharam ou saiu na coluna da Mônica Bergamo, mas doravante está aberto: um restaurante, um bar, uma cafeteria, são todos empresas com fins lucrativos. Não são um serviço público, filantrópico, uma ONG, feitos para você levar vantagem financeira. Pelo contrário: a gente vai a um restaurante para pagar mais por aquilo que não a gente não tem competência ou saco para produzir em casa. Eles nos servem para lucrar e, quem sabe, poder contratar nossos serviços depois, com este dinheiro. Eu juro.

E eu insisto em contar este segredo porque parece que qualquer regra que um restaurante ou bar ou café apliquem ao serviço parece fazer com que o cliente médio saia gralhando insatisfeito: “nossa que absurdo, onde já se viu”. Qualquer coisa que coloque um empecilho entre o cara e a conveniência dele é motivo de chamar o Celso Russomanno. A Casa Do Porco não fazia reservas, acho que agora faz para alguns horários, mas no início só atendia por ordem de chegada. “Noffa, que absurdo”. O Omotebako, ao contrário, só trabalha com reservas e em um horário específico. “Meu Deus, que falta de traquejo.” Nada é bom.

Com taxa de rolha, há quem cobre, quem não cobre e há quem nem aceite. Via de regra, a rolha deveria servir para quem quer beber algo muito especial e deseja um serviço e comida à altura da garrafa. Mas uma galera entendeu que a rolha foi feita para baratear o custo da refeição – o que implica, automaticamente, perda de lucro para o restaurante, que tem brigada, estoque, impressão de cardápio e material comprado para aquele serviço. Quando você barateia sua refeição com um vinho de supermercado, perdem: o garçom, o sommelier, o dono do restaurante e as importadoras que poderiam girar um vinho naquela carta. É o objeto direto de renda do estabelecimento, a casa vive de vender comida e bebida. É tipo levar sua própria faxineira pro hotel e pedir para abaterem o valor da limpeza da conta; levar suas peças para borracharia para só pagar os custos de mão-de-obra; é tipo levar um bolo à padaria e pedir para fatiarem, servirem em pratos bonitos, talheres, guardanapos, e só pagar pelos cafés consumidos. Aliás, quantos amigos você já não viu pedirem para levar um bolo de aniversário a um restaurante que tem carta de sobremesas? Eu acho um desaforo.

Quando o Ed Motta reclamou dos preços da rolha no Rio De Janeiro, achei muito certeira a resposta que o Alberto Landgraf deu à Folha: “Não cobrar rolha é um desserviço e desrespeito ao restaurante, aos funcionários, aos importadores e aos profissionais do ramo que trabalham o mês todo para ganhar o que Ed Motta toma de vinho em uma noite”. Errado não tá.

De uns tempos para cá, o Restaurante Cais começou a cobrar R$50/pessoa antecipados e com horário de chegada restrito às 19h00 – o valor, claro, é abatido na conta do jantar, caso você cumpra sua promessa de comparecer à mesa que outra pessoa poderia estar ocupando e gastando. O Oteque cobra antecipado o valor do menu-degustação, sem bebidas. Eu sou a favor e não é pouco. Sabe por que as pessoas reclamam? Não é porque elas acham 50 reais um absurdo. É porque elas querem a livre delícia de poder desmarcar sem avisar, de desistir, de tocar um “foda-se” para quem as estava esperando. O Rafael Costa E Silva (Lasai) e a Cris Beltrão (Bazzar À Vins), não raro, comentavam publicamente sobre os clientes que reservavam mas não apareciam. É recorrente, quase diário. Eu entendo todas as desculpas: teve alagamento, a cunhada passou mal, o chefe pediu para ficar mais meia horinha e você quebrou a perna. Sinto muito, é a regra. Se você não sair no prejuízo, a casa sairá – e, no caso, a culpa é menos dela do que sua.

É bem comum fora do Brasil: estabelecimentos pequenos ou muito caros ou muito lotados cobram algum valor (quando não o valor cheio) antecipado. “Ah, mas no Brasil não funciona assim, nossa cultura é diferente”. Experimenta dar um perdido no voo da Latam, ou dizer que trouxe um cliente a mais de última hora para embarcar, ou chegar meia horinha atrasado, ou tentar embarcar com uma mala a mais do que o permitido. 

Sabe o que NÃO é praxe lá fora? O turista brasileiro passar num Carrefour City ou Tesco antes de sair para jantar e levar uma garrafa de Vin De Table a um restaurante famosinho, um Lyle’s, um Momofuku Ko, um Clamato. Sabe o que também não é praxe? O turista brasileiro reclamar da taxa antecipada do L’Ambroisie, Sushi Noz ou Alain Ducasse. Eu acho legal quem aceita vinho de fora, eu mesmo levo a alguns lugares que aceitam, cobrando ou não. Se não aceitam, paciência.

No meu bar, se e quando eu tiver um bar, não vai ser permitido levar nada: nem vinho, nem o próprio bitter, nem aquele gim trazido de Londres (que eu já provei mil vezes), mas que você quer muito provar um drink com ele. Tem bar que aceita, que gosta. No meu, não vai poder. Simples assim. Quer levar uma garrafa? Leve-a de presente para o dono ou para o staff – quem sabe eles não decidem fazer um drink para você? E isso só porque este vai ser o meu bar, não o seu bar, nem o do Raphael Despirite, nem o da Martha Suplicy, nem o do Taumaturgo Ferreira. 

De qualquer forma, nunca é demais repetir: caso não goste da regra, você pode sempre não frequentar aquela casa, frequentar outra casa, ou abrir o próprio estabelecimento com as regras dos seus sonhos. Eu juro.

POR QUE ESTAMOS SAINDO? (Just Dance)

Eram 21h00 de uma quinta-feira, meu primeiro dia na Suécia depois de 10 anos sem pisar no país pelo qual mais tenho carinho nesta vida, mais do que meu próprio país (Brasil). Eu tinha chegado no meio do dia, deixado minhas coisas no hotel, caminhado 5 ou 6 quilômetros pelas ilhas de Södermalm e Normalm e tomado 3 meias-taças de vinho no delicioso bar Folii (total: 225ml). Tomei um banho e, voltando para as 21h00, segui para o Marie Laveau para jantar. O Marie Laveau é um bar que costumava servir ótimo “bangers & mash” (linguiça com purê de batata), boas cervejas e, com o passar da noite, se transformava num bar/baladinha indie. Não sei mais como está, nem se a linguiça com purê continua boa, porque às 21h15 eu cheguei na porta do bar e, sem querer, meu pé esbarrou num suporte para vela de 15cm de altura e derramou um pouco de querosene no chão. Antes que eu conseguisse pedir desculpas, o rapaz de moletom que estava na porta já começou a me tocar como um gado dali, em sueco. Eu fui expulso antes de entrar. Acho que mais pessoas também foram porque o bar estava praticamente vazio. Dois outros rapazes muito gentis que estavam fumando um cigarro na porta me avisaram “parece que você já bebeu suficiente essa noite amigo”. Eu disse que não tinha bebido naquela noite, eles notaram, eu exalava sobriedade, o cabelo ainda úmido do banho. Tudo bem. A casa estava vazia e eu segui meu rumo para jantar no meu bistrô favorito, o Rolfs Kök. Ali sim, quatro homens alegremente embriagados no balcão estavam falando alto, rindo e contribuindo para a boa atmosfera do lugar. Ninguém saiu ferido.

No dia seguinte, eu fui ao Secret Garden, uma balada gay também em Estocolmo. Cheguei cedo, encontrei meus amigos. Ali, como em vários outros clubes que conheço na cidade, há dois funcionários que passam a noite inteira rodando a casa e pescando pessoas que “aparentam já ter bebido demais” para expulsá-las – algumas delas são chutadas antes da meia-noite, sem nem ter os olhos vermelhos. Veja bem: não são pessoas causando problemas, passando a mão na bunda de alguém, gritando com o garçom, é só alguém que, segundo a patrulha da pinga, já tomou mais do que a mãe do bedel dizia ser saudável no almoço de domingo. São vários retirados, um a um, gente que sequer está pisando no colchão d’água ou andando torto. Um amigo meu, alegre mas não bêbado, foi convidado a se retirar enquanto dançava alegremente e apenas isso. Não tem discussão, é tchau e bênção. Depois de cinco long necks de cerveja (R$38 cada), eu fui ao bar e, ao perguntar “can I get a beer, please?”, o bartender respondeu “no, you can get a water”, com cara de lacracinha. Eu achei que tivesse ido ao bar, não à terapia – e foi isso que respondi para ele, antes de pegar o casaco e voluntariamente me retirar.

Toda casa tem o direito à sua própria política de comportamento, não tenho dúvidas: meu clube, minhas regras. Bêbados podem ser um problemão, eu bem sei. A discussão que proponho é sobre os motivos para sairmos de casa. Por que deveríamos ir a um bar ou a uma balada?

Até onde eu consigo me lembrar, a ideia original de um bar era vender bebidas que, invariavelmente, alteram os sentidos (para melhor ou para pior). Não é que alguns bêbados invadiram a cena de bares, que antes era careta; não é que seja ilícito; e também não é que os suecos sejam assim bebedores comedidos. É uma tendência de comportamento. E a Suécia é o país que conheço onde as coisas acontecem primeiro – as tendências de comportamento social, a relação com o lixo, com a comida, a primeira Greta Thunberg. E aqui, parece mesmo uma tendência já bem disseminada:

“Um terço das pessoas entre 18 e 25 anos hoje não ingere bebidas alcoólicas, de acordo com relatório da plataforma global Innova Market Insights. Por trás, com essa nova leva de consumidores, ascende uma cultura mais consciente sobre os efeitos do álcool no organismo e, principalmente, que busca a preservação do corpo e da mente.” (matéria de março da IstoÉ Dinheiro)

Sinto que existe um medo latente e crescente da relação com o êxtase, o arrebatamento, a beleza de se descolar um segundo da razão. Uma vez, numa conversa com o Padre Fábio De Melo, ele disse que o ser humano não vive sem o êxtase (qualquer que seja ele), que é esse breve esquecimento da realidade, e que, para poder suportar a carga da existência, é preciso ter um breve esquecimento de tudo que nos pesa. Disse também que o êxtase enquanto esquecimento da realidade não é alienação, porque depois que a gente passa por ele, a gente é devolvido à realidade de uma forma diferente, transformado pelo êxtase, voltando mais leve. “É um movimento de euforia que depois se transforma numa certa leveza.” Num bar ou num clube, não só é isso que eu busco ter, como também é o que eu busco ver e compartilhar. Não tenho medo dos comportamentos da nova geração, já não faço mais parte dela. Só me dá um aperto, perder de vista aquilo que eu tinha como ideal de sair, ficar ultrapassado no quesito do prazer.

Os clubes em Estocolmo (todos a que fui) estavam incrível e ineditamente vazios – eu diria que menos da metade de gente que eu via até 2012. Saí numa quinta, numa sexta e num sábado. No Secret Garden, eu não vi ninguém se beijando.

DONA MARIQUITA

A Bahia é tão independente culturalmente, que transforma cantores em milionários antes que eles cheguem ao sudeste. O artista surge por lá e, quando a gente descobre por aqui, ele já está no terceiro disco, tem jatinho particular e ninguém mais aguenta ouvi-lo cantar no carnaval de Salvador. Isso porque a Bahia, além de riquíssima em todos os elementos culturais (música, teatro, dança, comida, religião, arquitetura, etc), ela se consome. E talvez seja por isso, esse orgulho e independência (e por um tanto de umbigocentrismo do sudeste) que a gente ainda trate a cozinha baiana como exótica – a gente não faz questão de se apropriar como nossa comida cotidiana, e eles não fazem questão de exportá-la, porque já se bastam.

Em Salvador, come-se muito bem, em vários lugares e tipos de bares e restaurantes. Na cozinha mais alta, está no top 5 cidades do país; na cozinha média, é top 3. E, no topo da pirâmide, está Leila Carreiro, dona do melhor restaurante de Salvador, o Dona Mariquita. Ninguém, absolutamente ninguém, cozinha e pensa melhor a comida baiana do que esta mulher. Leila é, além de baita cozinheira e mulher maravilhosa, uma enciclopédia da culinária baiana. Se a cozinha do Dona Mariquita é patrimonial, a cozinheira é um patrimônio soteropolitano por si só. Cinco minutos conversando com ela e você se sente um jumento gastronômico – eu já passei mais de hora, que vergonha. Também é estudiosa das comidas de santo e da influência do candomblé naquilo que vai à mesa – o cardápio físico do Dona Mariquita, aliás, é uma aulinha de nomes e referências, tem glossário e notas de rodapé.

A casa é uma metralhadora de detalhes e belezas: das fotos lindas penduradas na parede ao uniforme das garçonetes também lindas, a riqueza do cardápio, das descrições, o cuidado na apresentação dos pratos, as louças, os sorrisos, tudo. É autêntico e exuberante, mas não é forçado – talvez essa seja a definição da própria cidade.

Não é só o melhor restaurante de lá, é o melhor bistrô brasileiro do país (junto com o Jiquitaia, acho). É disso que se trata o Dona Mariquita, um bistrô baiano de comida boa, muito acima da média, com respeito à tradição e às técnicas culinárias, num lugar bonito, sem frescurite, mas com ar-condicionado e cerveja gelada. Obrigado.

Em duas visitas a Salvador, eu fui quatro vezes ao Dona Mariquita. Voltaria (e voltarei) muitas outras, para zerar e repetir o cardápio inteiro. A cozinha é muito consistente. De qualquer forma, aqui vai minha sugestão de sequência para quem estiver na cidade. De nada.

SIRI MOLE FRITO

Depois de sentar e pedir sua cerveja, nem precisa olhar o cardápio: é siri mole frito. Os bichinhos vêm perfeitos, inteiros, fritos com técnica digna de um izakaya – o empanamento lindo e crocante, a carne úmida. A pimenta da casa (como na maioria das casas da cidade) acompanha com louvor.

EFÓ & ACAÇÁ

Efó é um refogado de taioba com camarão defumado, dendê, amendoim e castanha de caju. É das melhores coisas que já comi no Brasil. Acaçá de leite é um “bolinho” feito de milho branco com coco, ligeiramente adocicado, que serve como acompanhamento ou para comer separado – quase como um onigiri baiano. Aqui, junto com o efó, foi combinação fruto da minha cabeça mesmo e, peço licença para um arroubo arrogante, funciona demais.

XINXIM DE MOELA

Oxinxim é o nome do método de preparo. Aqui, o de moela é uma delícia e vem em porção menor, como entrada.

CARURU DE COSME E DAMIÃO

O caruru de Cosme e Damião do Dona Mariquita é o melhor que já provei na vida e, apesar de ser servido só em setembro, eu acho (só acho) que é possível encomendar com a Leila. De qualquer forma, existe porção de caruru para pedir no cardápio e considero indispensável.

MOQUECA DE CAMARÃO COM MATURI

Come-se moqueca na cidade inteira, mas eu sou meio viciado, então peço e recomendo pedir, apesar de ser o único prato que já vi oscilar na execução (da última vez veio com pouco caldo e menos quente do que eu amo). A vantagem da moqueca aqui é: menos leite de coco e mais dendê.

PUDIM DE FAVA DE ARIDAN

Dona Mariquita compra as favas de aridan de um japonês na Feira De São Joaquim. É uma fava meio gigante, com cheiro de fruta passa (banana, figo, essas mais gordinhas), mas bem delicada. O pudim é lindo, liso e pouco doce. Vitória.

DONA MARIQUITA

Rua do Meio, 178 – Rio Vermelho – (Salvador/BA)

Instagram: https://www.instagram.com/donamariquita/